Dois séculos de imigração no Brasil

Por Gustavo Barreto (*)

A construção da imagem e papel social dos estrangeiros pela imprensa entre 1808 e 2015

Trecho de editorial do jornal Folha da Manhã, 25 de fevereiro de 1926

Trecho de editorial do jornal Folha da Manhã, 25 de fevereiro de 1926

Resumo: A entrada e estabelecimento de imigrantes no Brasil desde 1808, data da abertura dos portos ao comércio com as nações amigas, foi um dos grandes acontecimentos da História do país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somente entre 1901 e 2000 a população brasileira saltou de 17,4 milhões para 169,6 milhões de pessoas, com 10% desse crescimento se devendo aos imigrantes. Esse intenso fluxo migratório foi acompanhado de um ainda maior fluxo de informações sobre estes novos residentes.

Durante todo o período analisado neste trabalho – de 1808 a 2015 –, a imprensa se ocupou do assunto a partir de referências conceituais como assimilação, nacionalismo, embranquecimento, eugenia, racismo, xenofobia, tolerância e hospitalidade. A partir da consulta de 11 mil edições de periódicos jornalísticos impressos presentes no país ou em português e sobre o Brasil em que o tema da imigração foi citado direta ou indiretamente, selecionamos aproximadamente 200 matérias jornalísticas que compõe este trabalho.

O objetivo, tomando como base referencial os estudos migratórios, é abordar as seguintes questões: o que significa ser imigrante ou estrangeiro para a imprensa brasileira ao longo da nossa História? Qual foi o papel atribuído a estes indivíduos e grupos, no Brasil, pelos meios de comunicação impressos?

Palavras-chave: Estudos Migratórios, Jornalismo, Imprensa, Imigração, Comunicação e Cidadania.

Acesse a tese na íntegra em http://bit.ly/projeto200 e a introdução abaixo.

INTRODUÇÃO

Tomara que não aconteça o que acontece com você, né? Porque com certeza você deve ter algum parente imigrante. Pai, avô, alguém deve ter imigrado. Mas os filhos esqueceram que os pais eram imigrantes. E nós somos tratados como se fôssemos bichos de outro planeta. Como se a imigração fosse uma coisa rara. Eu não conheço até agora no Brasil um brasileiro descendente de indígenas. Tomara que os filhos dos nossos filhos que vão ficar aqui não tratem os futuros imigrantes como os brasileiros nos trataram agora.

Luis Vásquez, presidente da Associação dos Empreendedores Bolivianos da Rua Coimbra, à repórter do jornal Folha de S. Paulo, janeiro de 2015.1

Quando, em 1867, chegam em Minas Gerais alguns cidadãos dos Estados Unidos, ampla atenção é dada pela imprensa local. Segundo o Diário de Minas, os imigrantes haviam fugido da sangrenta guerra civil de seu país, encerrada dois anos antes, “vítimas do partido vencedor”, e caberia portanto ao “hospitaleiro Brazil acolher em seo seio grande parte dessas infelizes víctimas”. Alguns anos depois, em 1874, o jornal A Nação noticia que 46 imigrantes britânicos teriam abandonado um núcleo colonial no Paraná. O periódico pede que suas queixas – “fundadas ou não” – sejam ouvidas e levadas ao governo imperial, “persuadindo os seus infelizes compatriotas a não abandonarem um paiz que tão hospitaleiramente os recebeu”. Em 1884, a Gazeta Paranaense defende as despesas realizadas com a colonização em meio a uma polêmica envolvendo imigrantes russos que voltaram para sua terra natal. O autor do artigo argumenta que o povo paranaense é “hospitaleiro por índole” e tem “sempre os braços abertos para os immigrantes, qualquer que seja a sua procedência”.

Já no século XX, mais especificamente em 1926 – quando o principal ciclo imigratório no Brasil já se aproximava de seu fim –, o jornal Folha da Manhã cita nosso “sentimentalismo” para o tema: “Não é raro passarem, illudindo a vigilância dos portos, indivíduos aleijados ou incapacitados para o trabalho e que aqui vêm exercer a rendosa profissão de mendigo. (…) O sentimentalismo nosso tolera essas e outras coisas. No entanto, não devia ser assim. Há necessidade de uma permanente e rigorosa prophylaxia social”. O título do editorial é pouco sutil: “Fechem-se as fronteiras!”. Já com Getúlio Vargas no poder, uma edição d’O Globo de 1931 repercute uma mudança na legislação que criava uma reserva trabalhista para a mão de obra nacional: “Paíz tradicionalmente hospitaleiro, o Brasil há de sempre acolher com enthusiasmo todos os filhos de outras terras que desejarem collaborar no seu progresso!”

Pouco tempo depois, quando o governo tentou receber refugiados assírios no país, e em meio a uma forte reação negativa, um dos poucos jornais que inicialmente apoiou o plano foi o A Nação, que afirmara que apenas “agricultores fortes e sadios” seriam incluídos. Apenas um mês depois, o mesmo jornal muda sua posição afirmando que o plano seria “uma tentativa de explorar os sentimentos humanitários do povo brasileiro”. Sobre um outro grupo de refugiados, os judeus – neste momento sendo perseguidos e assassinados aos milhões na Europa –, um importante ideólogo do Estado Novo, Azevedo Amaral, publica em seu Novas Diretrizes em 1941: “(…) o Brasil, com o sentimentalismo que nos veiu com as tradições liberais e com as influências africanas que desvirilizaram entre nós o espírito cristão, dando-lhe a fisionomia de uma doutrina de fraqueza e de tolerância em relação a todas as formas de atividade maléfica, extendeu insensatamente a sua hospitalidade aos refugiados, que os outros povos se dispunham a repelir à bala, se tanto fosse necessário”. Em 1947, já passada a guerra, o jornal A Noite dá destaque à “primeira leva de imigrantes dirigidos” que fazem parte dos 5 mil “já selecionados na Europa” por uma missão brasileira. “Quase todos deixaram a Itália pela dificuldade de vida que há ali atualmente, onde a falta de trabalho é imensa. Alguns, entretanto, vêm simplesmente pelo espírito de aventura, confiantes na nossa hospitalidade”, diz um trecho do texto.

Muitos anos depois, em 1980, uma legislação proposta pelo governo para regulamentar a permanência e entrada de estrangeiros no Brasil é destaque dos principais jornais brasileiros. O Globo repercute nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que classifica o projeto como “inaceitável” pelo seu “caráter xenófobo”, ferindo “uma longa tradição de hospitalidade brasileira e o reconhecimento aos direitos que toda a pessoa humana possui de encontrar sua digna sustentação, mesmo fora do seu país”. Poucos dias depois, o próprio O Globo afirma em editorial que o país “sempre cultivou a vocação da hospitalidade e da tolerância em relação ao imigrante, sem distinguir sequer entre as diversas etnias envolvidas”. O relator do projeto no Congresso Federal negou ao diário carioca que o projeto “fira a tradição de hospitalidade brasileira”, argumentando que “estamos querendo arrumar a situação dos estrangeiros que residem no Brasil, muitos inclusive em situação irregular”. Por coincidência, estava em visita ao Brasil o Sumo Pontífice da Igreja Católica, o papa João Paulo II, que não ficou alheio ao debate: para cerca de 60 mil pessoas, segundo O Globo “em sua maioria poloneses ou descendentes de poloneses”, o líder religioso disse todos ali presentes representavam “a ecumenicidade, hospitalidade e cordialidade” do Brasil, acrescentando que “aqui pessoas de todas as partes formam juntas só um povo”.

A hospitalidade brasileira seria, afinal, um mito? Um editorial da Folha de S. Paulo em 2012 diz que sim, muito embora “é fato que na sociedade brasileira a convivência entre etnias e religiões diferentes mostra-se menos conflituosa do que em outras nações”. Em 2014, o mesmo jornal repete: “Se a hospitalidade do Brasil é exagerada no imaginário nacional, não deixa de ser verdade que a convivência entre as etnias tende a ser menos conflituosa por aqui do que em outras nações”. Um outro colunista do mesmo jornal sustenta que, entre outros serviços, pessoas que facilitam ilegalmente a travessia de imigrantes, os chamados “coiotes”, vendem “hospitalidade brasileira” para os haitianos.

No mesmo ano, 2014, outro editorial da Folha sustenta: “Não se trata apenas de questão de generosidade ou de direitos humanos. Dentro de poucas décadas a força de trabalho brasileira começará a encolher. Se estiver preparado para administrar inevitáveis tensões sociais e econômicas, o país poderá aproveitar as ondas migratórias para impulsionar seu próprio desenvolvimento”. Já o concorrente O Estado de S. Paulo reclama das condições dos imigrantes em São Paulo da seguinte forma: “Se era para tratar esses seres humanos como animais, seria melhor tê-los impedido de entrar no Brasil – como, aliás, faz todo país cujo governo é prudente o bastante para medir as consequências de um fluxo migratório. (…) Sem esse visto, eles [haitianos] teriam de ser repatriados. Mas o governo federal petista, com o propósito de mostrar seu lado “humanitário”, criou um instrumento para regularizar a situação, estimulando a entrada em massa de novos imigrantes ilegais”.

Estes são apenas alguns trechos de jornais que expõem como os mitos acerca dos imigrantes e da imigração no país foram constituídos. A “hospitalidade brasileira” é, ao longo de dois séculos, um recurso discursivo frequentemente utilizado pelos redatores, jornalistas e demais realizadores da imprensa brasileira, sem que essa informação ofereça qualquer conclusão sobre a nossa “brasilidade” ou, ainda, sobre a relação dos brasileiros com os estrangeiros que chegam ao país, como viajantes momentâneos ou imigrantes cuja intenção é se estabelecer no território nacional. Afinal, o que significa ser imigrante ou estrangeiro para a imprensa brasileira? Qual foi o papel atribuído a estes indivíduos e grupos, no Brasil, pelos meios de comunicação impressos?

A tradição dos colonizadores portugueses, pode-se dizer, era pouco “hospitaleira”: entre 1550 e 1850 cerca de 4 milhões de africanos foram escravizados no Brasil, ao passo que calcula-se existirem na época da chegada dos portugueses cerca de 4 milhões de indígenas, restando em 1823 menos de um milhão deles.2 Em 1850, quando as autoridades nacionais proibiram o tráfico transatlântico de escravos, intensifica-se o ingresso de estrangeiros no país: 5 milhões de europeus, levantinos e asiáticos entrariam no território brasileiro entre 1850 e 1950 – uma grande parte recebendo algum tipo de subvenção do Estado, incentivos agrícolas, moradia e serviços sanitários, educacionais e até mesmo religiosos.3 Muito antes, no entanto – já a partir da abertura dos portos ao comércio com as nações amigas, em 18084 –, começam a chegar os primeiros estrangeiros que buscavam isoladamente se estabelecer no então território português.

A contribuição destes novos moradores para a sociedade então em formação, apesar de significativamente menor se comparada a países como Argentina e Estados Unidos, é considerável: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1901 e 2000 a população brasileira saltou de 17,4 milhões para 169,6 milhões de pessoas, com 10% desse crescimento se devendo aos imigrantes. Ao mesmo tempo, o Produto Interno Bruto (PIB) do país multiplicou-se por cem, e o PIB per capita, por 12.5

Durante as quatro primeiras décadas do século XX, o crescimento natural da população brasileira – ou seja, o saldo entre nascimentos e mortes – era de 19 por mil, enquanto a contribuição da imigração no mesmo período pode ser estimada em 2 por mil. Em outras palavras, sustenta o IBGE, 10% do crescimento populacional do período se deve à migração de estrangeiros. Na década de 1930, conforme destacaremos em um dos capítulos deste trabalho, o governo aprovou uma série de medidas restritivas relacionadas à entrada de imigrantes. Mesmo com a diminuição significativa do número de entradas de imigrantes em meados da década de 1930, fruto das restrições impostas por políticas públicas, a imigração contribuiu de forma direta (com os próprios imigrantes) e de forma indireta (com seus descendentes) com 19% do aumento populacional brasileiro entre 1840 e 1940, diz o IBGE – menos do que a Argentina (58%), os Estados Unidos (44%) e o Canadá (22%).6

Esse enorme fluxo de pessoas gerou um outro fluxo igualmente importante: o de informações. A chegada de D. João VI ao Brasil inaugura uma fase de intensas transformações, incluindo a instalação na capital, por meio de um decreto de 13 de maio de 18087, da primeira tipografia brasileira, Impressão Régia, administrada por uma junta a quem competia, entre outras funções, “examinar os papéis e livros que se mandassem publicar e fiscalizar que nada se imprimisse contra a religião, o governo e os bons costumes” (aviso de 24 de junho de 1808). Nascia assim, a 10 de setembro de 1808, o primeiro número da Gazeta do Rio de Janeiro. Com quatro páginas, o primeiro jornal da Corte anuncia que está à venda no fim da rua da Quitanda, saindo todos os sábados pela manhã.8 Muitos outros periódicos, conforme detalharemos no curso deste trabalho, virão em seguida.

Desde 1808 a imprensa acompanha com atenção estes estrangeiros. E aqui nos propomos, desde esse ano até a publicação deste tese, a verificar detalhadamente o que disse a imprensa. Assim, com o objetivo de sistematizar a apresentação desta temática na mídia jornalística impressa presente no país ou em português e sobre o Brasil, este trabalho buscou investigar o desenvolvimento do discurso sobre o imigrante e sobre a imigração em pouco mais de dois séculos da História do país (1808-2015). Para isso, consultamos cerca de 11 mil edições de periódicos entre as mais de sete milhões de páginas digitalizadas de periódicos9 depositadas em acervos das empresas de comunicação, da Biblioteca Nacional10 ou de arquivos públicos estaduais11. Entre estas 11 mil edições, em que o tema da imigração foi citado direta ou indiretamente, selecionamos aproximadamente 200 matérias jornalísticas que, por fim, compõe este trabalho. A enorme quantidade de informações geradas não coube neste trabalho. Com o duplo objetivo de aproveitar todo o material, por um lado, e dialogar com um público mais amplo ainda durante a realização do trabalho, por outro, cerca de 50% do conteúdo elaborado durante o projeto foi disponibilizado na Internet, em midiacidada.org, e compartilhado com um grupo online de pesquisadores.12

A escolha pelo formato impresso se deu pelo fato de que este foi o único que circulou durante todo o período da pesquisa, dando ao projeto uma homogeneidade que se tornaria excessivamente complexa caso outros meios fossem incluídos. Os meios são principalmente brasileiros, embora muitas das fontes históricas disponíveis remetam a jornais estrangeiros que circulavam no Brasil ou, ainda, publicações de determinados segmentos da sociedade. Os principais jornais e revistas utilizados são, na ordem em que aparecem no trabalho, os seguintes: Gazeta do Rio de Janeiro, Correio Braziliense (século XIX), Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro, Revista Illustrada, O Paiz, Correio Paulistano, A Província de S. Paulo (depois O Estado de S. Paulo)13, A Nação, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil, Folha da Manhã (depois Folha de S. Paulo)14, Opinião, O Globo (séculos XX e XXI)15, Correio da Manhã, A Noite, Novas Diretrizes, Diário de Notícias, Diário da Noite (SP), A Manhã, O Cruzeiro (revista) e Última Hora.

Entre os jornais locais incluem-se: A Voz do Brasil (PE), Diário de Minas, A Província de Minas e Mariannense (MG), Dezenove de Dezembro, O Paranaense e Gazeta Paranaense (PR), O Despertador e Regeneração (SC), La Battaglia, Página Um, A Plebe e Município (SP), O Republicano (MT), Correio do Povo (RS), O Estado do Pará (PA), os fluminenses O Lynce (Conceição de Macabu) e Gazeta de Petrópolis, além de três jornais do Espírito Santo: Jornal da Victoria (Vitória), O Povo (Santa Teresa) e O Espirito-Santense (Vitória).

Três jornais são do setor mais importante da economia brasileira no século XIX, a agricultura: A Immigração, O Auxiliador da Industria Nacional e Jornal do Agricultor. Dois são confessionais: Imprensa Evangélica e O Apóstolo. Outros também importantes para o debate aqui realizado incluem Almanak Laemmert, Aurora Fluminense, Mephistópheles, A Illustração Luso-Brazileira, O Globo (século XIX), O Jacobino, O Cruzeiro (jornal), Revista Moderna, Diário Carioca, O Imparcial, A Offensiva, Diretrizes, Imprensa Popular, O Radical, Voz Operária, Tribuna da Imprensa, Correio Braziliense (DF), Monitor Mercantil e Valor Econômico.

Apesar de esta pesquisa se constituir principalmente de fontes primárias, conforme mencionado anteriormente, também foram utilizadas fontes secundárias, como publicações sobre a história da imprensa no Brasil16; artigos técnicos e jornalísticos dos campos de comunicação, migrações humanas, história, antropologia e sociologia; relatos de viajantes estrangeiros; documentos de instituições públicas e privadas; relatos das memórias de imigrantes; e, por fim, a bibliografia registrada ao final deste trabalho. Além disso, sempre que foi necessário esclarecer algum fato ou contextualizar uma informação dos meios impressos analisados, também foram utilizadas fontes de outros meios – TV, rádio e Internet –, porém sempre com este propósito exclusivo de complementar a análise.

Entre as referências encontram-se diversos registros históricos, utilizados amplamente para servir de contraponto ou mesmo contextualização para os relatos dos periódicos que são objeto desta pesquisa, de modo a ampliar o entendimento sobre as notícias coletadas ou ainda guiar a pesquisa nos acervos. Também se optou por realizar buscas por palavras-chave, o que nos obrigou a realizar uma segunda pesquisa de modo a dar conta das sucessivas revisões ortográficas ao longo da história da língua portuguesa no Brasil. A partir de uma escolha metodológica, buscou-se sempre que possível manter a grafia original dos registros históricos. Os termos que tomamos como ponto de partida foram “imigração”, “imigrantes” e “estrangeiros”, bem como seus demais variantes ortográficos de cada período, com pesquisas posteriores eventualmente surgindo a partir da exploração inicial do tema, como no caso das buscas por determinadas nacionalidades com o objetivo de contextualizar determinado acontecimento ou, ainda, aprofundá-lo.

Em termos jornalísticos, a seleção de notícias levou em conta critérios usualmente utilizados neste campo de conhecimento: a relevância, a periodicidade, o espírito crítico, a relação com o poder em cada período histórico e a frequência com que um determinado tema voltava à pauta.17

Observamos que a imprensa brasileira é, ao longo de todo o período, vinculada em sua maioria a estruturas de poder de cada época período e, portanto, em muitas ocasiões um braço de grupos ou segmentos políticos e econômicos. A informação seletivamente publicada pelos meios de comunicação nos ajuda, no entanto, a compreender o discurso de parte da elite brasileira acerca deste tema tão central para o Brasil que é a imigração. As deformações e a subjetividade presentes neste discurso são, antes de imprecisões, um valioso conjunto de interpretações desta elite sobre conceitos como “nação”, “imigrantes”, “povo” e “brasilidade”, entre outros, nos ajudando a entender como se desenvolveu, ao longo de dois séculos de imigração no Brasil, o pensamento brasileiro acerca do tema. A manipulação, a omissão, a seletividade e a ênfase do jornalismo aqui analisado, antes de elementos negativos, nos apresentam uma insuspeita narrativa dos usos políticos da imprensa brasileira que, por um lado, causa muitas vezes espanto entre as atuais gerações e, por outro, nos alerta para os riscos da estigmatização, da discriminação e da xenofobia.18 Além disso, é um importante lembrete sobre a nossa condição imigrante que, conforme destacado nas primeiras linhas desta introdução, muitos parecem ter esquecido.

Além desta introdução, os demais capítulos estão divididos da seguinte forma.

No segundo capítulo – A teoria imigrante – fazemos uma pequena introdução sociológica do Brasil oitocentista e, em seguida, uma breve apresentação do debate teórico que nos guiou ao longo de todo o trabalho, abordando conceitos como “raça”, “etnia”, “povo”, “identidade nacional” e “cultura”, entre outros. Elaboramos, assim, um roteiro metodológico que nos ajudará a “ler” os jornais e demais periódicos do período analisado – de 1808 a 2015. Ao mesmo tempo, buscamos problematizar neste capítulo, à luz do material coletado e analisado, estes mesmos modelos teóricos.

O terceiro capítulo – A gênese imigrante – trata do período de 1808 a 1870, quando o número de entradas era considerado irrisório (não excedia 3 mil pessoas ao ano), possuindo além disso precária documentação estatística. Este período é marcado por experimentações na área de políticas imigratórias e a intensificação, sobretudo a partir de 1850, do debate acerca da necessidade de “braços para a lavoura”.

O quarto capítulo – O ensaio imigrante – cobre o período entre os anos de 1870, quando tem início o ciclo de imigração em massa no Brasil, até 1889, quando é “proclamada” a República. Foi a partir da década de 1870 que o “ensaio” imigrante abordado neste capítulo ganha força, surgindo desde então e até o final do regime monárquico muitas das colônias que se tornariam cidades profundamente influenciadas pelos seus primeiros colonos. Ainda mais além da mera ocupação geográfica, os imigrantes passariam a influenciar mais decisivamente a sociedade brasileira em termos culturais, sociais, econômicos e políticos. É neste período que se realiza o primeiro censo nacional (1872) e se consolida o projeto de poder republicano.

O quinto capítulo – A afirmação imigrante – trata do período que vai da chegada dos republicanos ao poder (1889) até o início da Era Vargas (1930). É finalmente vitoriosa a tese de que o futuro do Brasil depende do braço europeu na lavoura. Procuram-se agricultores brancos que, de uma vez só, trarão a prosperidade econômica e o “melhoramento racial”.

O sexto capítulo – A hifenização imigrante – marca a chamada Era Vargas (1930-1945), quando foi relativamente bem-sucedido um projeto autoritário e nacionalista de poder. Tratou-se de um período de grande receio para muitos dos estrangeiros, em grande parte obrigados da noite para o dia a deixar seus “quistos étnicos” e se “assimilar”.

O sétimo capítulo – O dilema imigrante – trata de dois períodos distintos. O primeiro vai de 1946 a 1964, com o Brasil vivendo uma frágil e instável democracia, porém com relativa tranquilidade institucional. As perseguições políticas cessaram drasticamente, se comparadas com as dos períodos anteriores (República Velha e Estado Novo) e posterior (ditadura civil-militar). Se as “raças inferiores” deixariam de ser o alvo principal das políticas restritivas do Estado brasileiro, outras alegadas “ameaças” à “segurança nacional” se somariam neste momento aos antigos temores de parte das elites brasileiras. De 1964 a 1980, a doutrina da segurança nacional (DSN) ganha força a partir da ascensão de um regime totalitário no Brasil. O terrorismo de Estado praticado tanto no Brasil quanto em diversos outros países latino-americanos marca não só o período que se segue como a própria História do Brasil – uma herança autoritária ainda presente no cotidiano dos brasileiros e estrangeiros residentes no país.

A partir da aprovação do Estatuto do Estrangeiro (1980), ainda sob forte influência da doutrina da segurança nacional, o oitavo capítuloA geração imigrante – aborda o período de redemocratização do país e o retorno à legalidade (para os brasileiros). A nova lei dos estrangeiros manteve o legado nacional de discriminação e xenofobia: restringia os direitos políticos e a liberdade de expressão dos estrangeiros e permitia que o Estado brasileiro continuasse a adotar políticas discricionárias em relação aos imigrantes. O ideário da “ameaça comunista” que permeou o imaginário das autoridades e da imprensa brasileira em alguns dos períodos anteriores não é tão evidente, embora tenha sido substituído por novas “ameaças” frequentemente usadas como justificativa para restringir a entrada de imigrantes no país ou, pelo menos, para argumentar pelo aumento das restrições.

No período mais recente, o Brasil se torna um país “emigrante”, invertendo o fluxo imigratório que marcou a maior parte de sua História, sobretudo durante a República Velha. As premissas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ganhariam uma visibilidade cada vez maior, com muitos de seus artigos se efetivando para grande parte da população, mesmo que ainda haja um longo caminho a percorrer.

No último capítulo, faremos uma breve reflexão sobre o nosso principal objeto de estudo – a construção da identidade e do papel dos imigrantes pela imprensa entre 1808 e 2015 – bem como algumas observações sobre as perspectivas e desafios que se colocam diante dos estudos migratórios, bem como dos rumos da imprensa no que diz respeito à cobertura das temáticas da imigração e dos imigrantes em especial.

Acesse a tese na íntegra em http://bit.ly/projeto200

NOTAS

1 PERRIN, Fernanda. Nova onda de imigração atrai para São Paulo latino-americanos e africanos. Folha de S. Paulo, 23 jan. 2015. Disponível em http://bit.ly/19bMJgO. Acesso em 30 jan. 2015.

2 CARVALHO, 2010:20.

3 ALENCASTRO; RENAUX, 1997:314.

4 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Carta Régia de 28 de janeiro de 1808. Disponível em http://bit.ly/1BTO4on. Acesso em 20 dez. 2014.

5 IBGE lança Estatísticas do século XX. IBGE, 29 set. 2003. Disponível em http://bit.ly/1vUThGZ. Acesso em 22 ago. 2015.

6 IBGE lança Estatísticas do século XX. IBGE, 29 set. 2003. Disponível em http://bit.ly/1vUThGZ. Acesso em 22 ago. 2015.

7 BRASIL. Decreto de 13 de Maio de 1808. Disponível em http://bit.ly/1ETSmKg. Acesso em 20 dez. 2014.

8 Todas as edições da Gazeta do Rio de Janeiro encontram-se digitalizadas e disponíveis no site da Biblioteca Nacional em http://bit.ly/1JExUA6. Acesso em 2 jan. 2015.

9 Calculo aproximado, para baixo, entre as páginas digitalizadas pela Biblioteca Nacional, pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo e pelos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo.

10 A esmagadora maioria dos acervos dos jornais aqui analisados se encontram fisicamente na Biblioteca Nacional ou, ainda, em sua Hemeroteca Digital, em http://hemerotecadigital.bn.br, com cinco milhões de páginas digitalizadas.

11 Principalmente do Arquivo Público do Estado de São Paulo, disponível em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/jornais_revistas e que durante esta pesquisa contava com uma coleção de mais de 235 mil exemplares de jornais, 30 mil exemplares de revistas e 16 mil exemplares de publicações seriadas (relatórios, boletins, atas).

12 O grupo, denominado “Brasil País de Imigração”, pode ser acessado em www.facebook.com/groups/brasilpaisdeimigracao

13 Disponível através de acesso pago em http://acervo.estadao.com.br

14 Disponível gratuitamente em http://acervo.folha.com.br

15 Disponível através de acesso pago em http://acervo.oglobo.globo.com

16 As duas mais utilizadas são vinculadas à Biblioteca Nacional: Revista de História da Biblioteca Nacional e Nossa História, esta última já extinta.

17 KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. São Paulo: Geração Editorial, 2003.

18 Sobre esta linha metodológica, ver FERREIRA, Marieta de Moraes. Fontes históricas para o estudo da imigração. Rio de Janeiro: CPDOC, 2000. 9f. Disponível em http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/936.pdf. Acesso em 30 jan. 2015.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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