Dermeval Saviani: A pedagogia revolucionária

Por Gustavo Barreto (*)

Dermeval Saviani: A pedagogia revolucionária

A primeira edição de “Escola e democracia”, de Dermeval Saviani, data de 1983, em momento histórico posterior ao de Paulo Freire e seu “Educação como prática da liberdade”. Saviani encontra, por isso mesmo, possibilidades de reflexão sobre o processo pedagógico que são certamente diferentes, encontrando contudo pontos em comum com Freire.

Saviani parte da confecção de um panorama das teorias da educação. O autor fala em dois grandes grupos ao tratar do problema da marginalidade.

O primeiro grupo (teorias não-críticas) entende a educação como um instrumento de equalização social e, portanto, de superação da marginalidade. Ela reforça os laços sociais, promove a coesão e garante a integração de todos os indivíduos no corpo social (é fundamentalmente educativa). Nesta perspectiva, a educação é autônoma.

O segundo grupo (teorias crítico-reprodutivistas) entende a educação como instrumento de discriminação social e, portanto, ela própria fator de marginalização. Essencialmente marcada pela divisão entre grupos e classes antagônicas (é fundamentalmente política). O grupo ou classe que detém a maior força é dominante por se apropriar dos resultados da produção social e produz necessariamente marginalização. Nesta perspectiva, a função básica da educação é a reprodução da sociedade. (p.3-4)

Teorias não-críticas

A partir dos séculos XVIII e XIX, a educação se tornou essencial para países como a Prússia, a França e a Inglaterra, em um processo que lembra o aprendizado da informática nos dias atuais, em termos sociais. Tratava-se sobretudo de uma necessidade da industrialização à época, e de uma demanda do capitalismo na contemporaneidade.

Na cartilha liberal, portanto, a educação se torna um direito de todos e dever do Estado, parte de uma metodologia para superar um regime anterior (obsoleto) e celebrar a liberdade dos indivíduos por meio do combate à ignorância. Jean-Jacques Rousseau é o pai da ideia de que todos os homens nascem livres e o Estado os ‘protege’, se necessário, de tiranos ou da ignorância do próprio povo: “(…) desejaria que ninguém no Estado pudesse considerar-se acima da lei e que ninguém de fora pudesse impor-se, obrigando o Estado a reconhecê-lo. Pois, não importa a constituição de um governo, se nele houver um único homem não-submetido à lei, todos os outros estarão necessariamente à mercê deste” (Rousseau, 1712-1778; vide referência ao final).

Ocorre então a transformação formal e gradual de súditos em cidadãos, “redimindo os homens de seu duplo pecado histórico: a ignorância, miséria moral, e a opressão, miséria política” (Zanotti, 1972 apud Saviani, 2009, p.5) .

Entre as teorias não-críticas podemos destacar três principais linhas. A primeira é a da Escola Tradicional (pedagogia da essência), modelo já conhecido em que a escola é centrada no professor, que transmite conhecimento aos alunos, que por sua vez o assimilam.

Já a Escola Nova, ou escolanovismo (pedagogia da existência), aponta que o marginalizado não é o ignorante, e sim o rejeitado. A “anormalidade psíquica” pode ser detectada por meio de testes de inteligência, de aptidão, de personalidade etc. Os homens são essencialmente diferentes, cada indivíduo é único, e a escola precisa se adaptar a isso, ‘socializar’ o aluno. (p.5-7)

Saviani destaca que o escolanovismo desloca a questão do intelecto para o sentimento, do lógico para o psicológico, da cognição para os processos pedagógicos, do esforço para o interesse, da disciplina para a espontaneidade, da quantidade para a qualidade; O importante não é aprender, mas ”aprender a aprender” (p.8-9). O professor estimula, mas a iniciativa é dos alunos. “Em suma, a feição das escolas mudaria seu aspecto sombrio, disciplinado, silencioso e de paredes opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, barulhento e multicolorido” (p.9).

O autor aponta que a Escola Nova é um modelo com altos custos financeiros e não se popularizou, relegando o “povão” à Escola Tradicional, por vezes o único meio de acesso ao conhecimento elaborado. Saviani questiona: Não seria este um “mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante”? (p.10) Por trás da ideia de que a Escola Tradicional é deficiente, está o ideário de que “é melhor uma boa escola para poucos do que uma escola deficiente para muitos” (id.).

O terceiro modelo em destaque, entre as teorias não-críticas, é o pedagogia tecnicista. “A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional”. (p.11) Daí decorre o processo clássico de alienação que apontou Marx e Freire mais tarde: “(…) O concurso das ações de diferentes sujeitos produz assim um resultado com o qual nenhum dos sujeitos se identifica e que, ao contrário, lhes é estranho”. (idem)

A educação é uma organização racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência. São exemplos amplamente difundidos o telensino, a hiperespecialização e a extensa utilização de cartilhas, objeto de críticas por parte de Paulo Freire por conta do processo desumanizador que carrega. “Aprender a fazer” é a máxima.

Na pedagogia tecnicista, o professor tem posição secundária. Estes(as) profissionais são meros executores de uma política educacional por parte dos especialistas, que por sua vez são neutros, objetivos, imparciais; A educação é um subsistema do sistema social. O marginalizado passa a ser o ineficiente, o improdutivo. Na universidade, por exemplo, o que não consegue publicar um artigo e ir a um congresso todo ano. O controle é feito por meio de preenchimento de formulários. (p.10-13)

Teorias crítico-reprodutivistas

O segundo grupo é composto pelo conjunto do que Saviani denominou teorias crítico-reprodutivistas. (p.15-19)

Uma das mais influentes é a teoria do sistema de ensino como violência simbólica, formulada por P. Bourdieu e J.-C. Passeron. “Sobre a base da força material e sob sua determinação, erige-se um sistema de relações de força simbólica cujo papel é reforçar, por dissimulação, as relações de força material. (…) Assim, à violência material (dominação econômica) exercida pelos grupos ou classes dominantes sobre os grupos ou classes dominados corresponde a violência simbólica (dominação cultural)” (p.16 e 17) .

Este sistema de dominação não está restrito à escola: inclui mídia, família, religião. Parece não haver muita saída: “Todos os esforços, ainda que oriundos dos grupos ou classes dominados, reverte sempre no reforço dos interesses dominantes” (Saviani, p.19). À luz da teoria da violência simbólica, conclui o autor, a classe dominante exerce um poder de tal modo absoluto que se torna inviável qualquer reação por parte da classe dominada. “A luta de classes resulta, pois, impossível” (id.).

Outra teoria incluído no mesmo grupo pelo autor foi formulada por Louis Althusser e foi denominada “Teoria da escola como Aparelho Ideológico de Estado (AIE)” (p.23-26). Enquanto o Aparelho Repressivo de Estado (ARE) atua pela violência e secundariamente pela ideologia, o AIE atua inversamente. Há três tipos sociais neste cenário:

  1. Operários e camponeses, que fazem a escola básica para entrarem no processo produtivo;

  2. Outros avançam, são os pequeno-burgueses de toda espécie;

  3. E os que chegam ao topo da pirâmide são os agentes de exploração (sistema produtivo), agentes de repressão (atuam no ARE) e os profissionais da ideologia (atuam no AIE);.

Althusser não nega a luta de classes, aponta Saviani, mas a vê como uma “luta heroica porém inglória”.

Por fim, a última teoria listada por Saviani no grupo de teorias crítico-reprodutivistas é a “Teoria da escola dualista” (C. Baudelot e R. Establet). A escola (tal como a sociedade) se divide em duas redes (burguesia e proletariado), sendo que a ideologia do proletariado está fora da escola, que serve como aparelho ideológico da burguesia, tentando impedir o desenvolvimento da ideologia do proletariado e a luta revolucionária (p.25-26).

Questionamentos e premissas

As principais deficiências destas teorias são as seguintes: (i) Tais teorias não possuem propostas pedagógicas (p.27); (ii) A história é sacrificada (id.); (iii) Uma teoria crítica não-reprodutivista só pode ser formulada do ponto de vista dos interesses dos dominados (p.28); (iv) É importante lutar contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares (p.29), tomando como exemplo a “educação compensatória” como substituta de problemas que não são propriamente educacionais (p.29 a 32).

Já a Escola Nova dissolve, argumenta o autor, a diferença entre ensino e pesquisa. Se o ensino é empobrecido, a própria pesquisa é inviabilizada. Segundo Saviani: “(…) o desconhecido só se define por confronto com o conhecido, isto é, se não se domina o já conhecido, não é possível detectar o ainda não conhecido, a fim de incorporá-lo, mediante pesquisa.” (p.43) Ele complementa com a seguinte argumentação, em síntese: “Se os membros das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação” (p.51).

Saviani defende a prioridade de conteúdo, contra o que denomina aligeiramento do ensino (p.50-51): “(…) diz-se comumente o seguinte: todo o conteúdo de aprendizagem do primeiro grau será dado em oito anos; eis o legal, ou seja, o ideal. Mas, naqueles lugares em que não há condições de se ter escola de oito anos, então que se organize esse conteúdo para seus anos, em outros, para quatro ou dois, e assim por diante.” E conclui: “Dessa maneira, o ensino das camadas populares pode ser aligeirado até o nada, até se desfazer em mera formalidade.” (id.)

Surge daí a formulação de Saviani da tese filosófico-histórica “do caráter revolucionário da pedagogia da essência (pedagogia tradicional) e do caráter reacionário da pedagogia da existência (pedagogia nova)” (p.53), pela crença ainda não só no conteúdo, como também na forma disciplinar de assimilação deste conteúdo – não mais a partir de um paradigma dos séculos passados, mas agora adotando o que classificou como pedagogia revolucionária.

Saviani, por meio de três teses (a primeira delas acima), sintetiza seu pensamento buscando manter alguns elementos da Escola Tradicional que considera consolidados. A segunda tese (pedagógico-metodológica) trata do “caráter científico do método tradicional e do caráter pseudocientífico dos métodos novos” (p.54), argumentando que o método tradicional possui, sim, um caráter profundamente científico.

A oposição que Saviani propõe ao que denomina confusão entre ensino e pesquisa científica está fundamentada na confiança do movimento que vai da síncrese (“visão caótica do todo”) à síntese (“rica totalidade de determinações e de relações numerosas”) por meio da mediação da análise (“abstrações e determinações mais simples”). Para Saviani, essa dinâmica constitui uma orientação segura tanto para o processo de descoberta de novos conhecimentos (método científico) como para o processo de transmissão-assimilação de conhecimentos (método de ensino). (p. 66-67)

Já a terceira tese (especificamente política) denuncia a democracia como um engodo (id.). O problema da democracia é o seguinte. Uma pedagogia democrática precisa, argumenta o autor, assumir o problema: “(…) se a educação supõe a desigualdade no ponto de partida e a igualdade no ponto de chegada, agir como se as condições de igualdade estivessem instauradas desde o início não significa, então, assumir uma atitude de fato pseudodemocrática? Não resulta, em suma, num engodo?”. (p.69)

Da mesma forma, se as condições de igualdade estão dadas desde o início, logo “já não se põe a questão de sua realização no ponto de chegada. Com isso o processo educativo fica sem sentido.” (id.). Assim como Freire, Saviani assume que a democracia é uma conquista, e não um dado. “(…) também a negação dessas condições de uma possibilidade no ponto de chegada inviabiliza o trabalho pedagógico”. Desta forma, na mesma linha freireana, “não se trata de optar entre relações autoritárias ou democráticas no interior da sala de aula, mas de articular o trabalho desenvolvido nas escolas com o processo de democratização da sociedade.” (p.70-71)

A própria educação, que está dentro (e não fora) da sociedade, está condicionada, sem necessariamente estar paralisada. É próprio da consciência crítica, aponta Saviani, saber-se condicionada, determinada objetivamente, materialmente (p.57).

A ideia de escola (ou educação) como “redentora da humanidade”, ideia esta com força tanto na pedagogia tradicional quanto na pedagogia nova (segundo o autor), acaba por gerar a “armadilha da inversão idealista”. Argumenta Saviani: “(…) de elemento determinado pela estrutura social, a educação é convertida em elemento determinante, reduzindo-se o elemento determinante à condição de determinado. A relação entre educação e estrutura social é, portanto, representada de modo invertido” (p.57).

Pedagogia revolucionária

A pedagogia revolucionária, proposta do autor, “não nega a essência para admitir o caráter dinâmico da realidade como o faz a pedagogia da existência, inspirada na concepção ‘humanista’ moderna de filosofia da educação” (p.59). Conforme já vimos, sabe-se condicionada: A educação é elemento secundário e determinado. O conteúdo vivo é tarefa primordial de processos educativos em geral e da escola em particular. Ele completa: “O cerne dessa novidade radical consiste na superação da crença na autonomia ou na dependência absolutas da educação em face das condições sociais vigentes” (id.). E registra que Paulo Freire “colocou métodos da Escola Nova a serviço dos interesses populares”, por meio da alfabetização de adultos, por exemplo. (p.61)

Quando, no entanto, a educação passa a ser formulada a partir dos interesses das classes populares, adverte Saviani, “(…) novos mecanismos de recomposição de hegemonia são acionados: os meios de comunicação de massa e as tecnologias de ensino” passam a construir a ideia de educação permanente, educação informal e até mesmo de destruição da escola. (p.62)

Parece pertinente destacar a proposta em síntese do autor, que se encontra na página 62:

Uma pedagogia articulada com os interesses populares valorizará, pois, a escola; não será indiferente ao que ocorre em seu interior; estará empenhada em que a escola funcione bem; portanto, estará interessada em métodos de ensino eficazes. Tais métodos situar-se-ão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por incorporação as contribuições de uns e de outros.

Serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos. (Saviani, p.62)

Em suma, a pedagogia revolucionária “não é outra coisa senão aquela pedagogia empenhada decididamente em colocar a educação a serviço da referida transformação das relações de produção.” (p.68)

Prática educativa

A partir das teses expostas, concluímos que, para o autor, a “importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento”. (p.79) Adicionalmente, “só posso afirmar que a educação é um ato político (contém uma dimensão política) na medida em que eu capto determinada prática como sendo primordialmente educativa e secundariamente política” (p.82).

O “pleno exercício da prática educativa” [a partir da mudança do paradigma da coerção à persuasão, conforme Gramsci e depois Freire] só é possível “no horizonte de possibilidades das condições atuais, mas que não chegou ainda a se concretizar”. A “plenitude da educação como, no limite, a plenitude humana está condicionada à superação dos antagonismos sociais” (p.78).

A partir da referida obra criamos a tabela abaixo, expondo uma síntese das ideias de Saviani:

Escola Tradicional (método científico indutivo, Bacon)

Escola Nova

Pedagogia revolucionária

1o passo

Preparação (aula anterior) Atividade, Prática social

2o passo

Apresentação (novo conhecimento) Que suscita determinado problema Problematização, a partir da prática social

3o passo

Assimilação e comparação (aprender e comparar) Que provoca o levantamento (coleta) de dados Instrumentalização (teórica e prática, não-tecnicista)

4o passo

Generalização (identificar outros fenômenos) A partir dos quais seriam formuladas hipóteses (…) Catarse, segundo Gramsci: ”elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (Gramsci, 1978 apud Saviani, 2009, p.64) Trata-se da incorporação dos instrumentos culturais, agora elementos ativos de transformação social.

5o passo

Aplicação (‘dever de casa’) Que explicam o problema em questão, dando-se assim a experimentação conjunto professor-aluno Prática social, em que alunos não são mais ‘sincréticos’ e podem entender a ‘síntese’ realizada a partir desta mediação.

(p.40-43, depois 62-65)

REFERÊNCIAS

Saviani, Dermeval. Escola e democracia. 41. ed. revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2009.

Rousseau, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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