De ‘estrangeiro’ a cidadão: Lei de migrações propõe acabar com legado da ditadura sobre o tema

Por Gustavo Barreto (*)

Texto de Jose Luis Bolzan de Morais, Paulo Abrão Pires Jr., João Guilherme de Lima Granja e Deisy de Freitas Lima Ventura.

Passados quase 26 anos de promulgação da “Constituição Cidadã”, a legislação brasileira ainda guarda vínculos com o passado que precisam ser enfrentados. São  “manchas”, como escreveu Luis Fernando Veríssimo em seu conto A Mancha, publicado por ocasião dos 40 anos do golpe civil-militar de 1964[1]. Aquele texto literário desvela um pouco da experiência político-institucional brasileira, em particular o “turning point” jamais realizado pelo processo de redemocratização no pós-ditadura, cujas continuidades/permanências marcam nosso cotidiano jurídico-político. Um convívio entre o passado e o futuro, para lembrar Hannah Arendt; ou entre o “não mais” e o “ainda não”, na fórmula de Giacomo Marramao.

O mais grave é que a projeção do passado no presente compromete também o futuro, ao menos enquanto não “acertarmos as contas” com o legado do mais recente período autoritário brasileiro. Passando da realidade da ficção à ficção da realidade, constatamos que a política brasileira depende ainda largamente de atores do passado, pesando como o chumbo daqueles anos tristes em nossas instituições democráticas. Isto explica o  porque a transição para a democracia, supostamente “negociada” entre algozes e vítimas, tenha garantido o continuísmo do “antigo” regime em numerosos campos. As “manchas” são muitas, e não cabe aqui listá-las.

Nossa intenção, aqui, é tratar de uma delas, pouco referida no debate sobre a democracia brasileira: trata-se do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80), florão da velha ideologia da segurança nacional, que restringe os direitos dos “estrangeiros”, reservando sua permanência no Brasil à completa discricionariedade do Estado. Porém, sabemos o quanto é difícil para o cidadão brasileiro dar-se conta de que esta legislação de outros tempos é a responsável pela incapacidade do Brasil de ter uma política migratória à altura de seus desafios. Daí decorre a sucessão de episódios que fazem as migrações internacionais parecerem um grave problema a ser contido pelo Estado. Ao mesmo tempo, o passado mais recente esconde uma verdade histórica que está em nossos rostos e sobrenomes, qual seja o papel decisivo dos migrantes, provenientes de diversas regiões do mundo, na construção de nosso país.

Ciente do papel do chamado “entulho autoritário” nas dificuldades de promover a regularização migratória e os direitos dos migrantes, o Ministério da Justiça, por meio da Portaria 2.162/2013, criou uma Comissão de Especialistas com a finalidade de apresentar uma proposta de Lei de Migrações. Não se trata, portanto, de reformar ou adaptar o Estatuto do Estrangeiro. O objetivo foi eliminar da ordem jurídica pátria o nefasto legado da ditadura militar nesta área.

Ao estabelecer uma tipologia jurídica do “migrante”, o anteprojeto abandona o conceito de “estrangeiro” (do latim extraneus, com sentido comum de alheio, esquivo, estranho ou impróprio), não apenas de conotação pejorativa em nossa cultura, mas também juridicamente consagrado na lei vigente como um sujeito de segunda classe, privado, sem justificação plausível num regime democrático, de parcela significativa dos direitos atribuídos aos nacionais.

Da Comissão de Especialistas fizeram parte, além dos autores deste artigo, André de Carvalho Ramos, Aurélio Rios, Clèmerson Clève, Rossana Reis, Tarciso Dal Maso Jardim e Vanessa Batista Berner. Entre 25 de julho de 2013 e 30 de maio de 2014, a Comissão reuniu-se com representantes de órgãos do governo e de instituições internacionais, parlamentares, especialistas e acadêmicos convidados, e promoveu, ainda, duas audiências públicas com ampla participação de entidades sociais e da cidadania, tendo seus membros participado individualmente de numerosas reuniões e atividades relativas aos direitos dos migrantes e à legislação migratória, em diversas cidades do Brasil.

Uma primeira versão do anteprojeto foi difundida em abril de 2014, e a seguir submetida à discussão em audiência pública, recebendo mais de duas dezenas de contribuições escritas de entidades públicas e sociais, e também individuais de migrantes e de especialistas, além das sugestões da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ). Foram consideradas, por fim, as recomendações da I Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (Comigrar), ocorrida entre 30 de maio e 1° de junho de 2014, em São Paulo.

Para resumir o conteúdo deste anteprojeto, apresentamos suas principais características. Em primeiro lugar, foi preciso compatibilizar a legislação com a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de Direitos Humanos aqui vigentes. Via de consequência, impunha-se uma mudança de paradigma, pois, até então, migrações internacionais eram consideradas pelo direito brasileiro como tema de segurança nacional ou questão de mercado de trabalho. Com o novo anteprojeto, o Brasil passa a abordar as migrações internacionais sob a perspectiva dos Direitos Humanos.

Para tanto, o anteprojeto converte a dicotomia brasileiro/estrangeiro em uma nova paleta conceitual. A expressão migrante compreende imigrantes (os nacionais de outros Estados ou apátridas que chegam ao território brasileiro) e emigrantes (os brasileiros que deixam o território do Brasil). Os imigrantes passam a ser classificados em transitórios, temporários e permanentes. Enquanto os primeiros vêm ao Brasil para finalidade de turismo, negócios ou curta estada para realização de atividades acadêmicas ou profissionais, os demais almejam a residência no país, com intuito temporário ou definitivo. Além de superar a conotação pejorativa da expressão estrangeiro quando aplicada a pessoas, esta tipologia oferece per se maior informação sobre o status do indivíduo, assim como maior eficiência na regulação de seus direitos e deveres.

Outra característica deste anteprojeto é o objetivo de dotar a ordem jurídica pátria de coerência sistêmica. Com efeito, na falta de uma lei compatível com o direito constitucional brasileiro e com o direito internacional dos direitos humanos, ocorreu a proliferação de atos normativos infra-legais para atendimento de demandas e situações específicas, em especial as urgentes. Avançou igualmente a negociação, pelo Estado brasileiro, de acordos bilaterais e regionais relativos aos direitos dos migrantes, instituindo facilidades e benefícios para migrantes de determinadas nacionalidades. Logo, convivem hoje no Brasil regimes de acolhida e de autorização para trabalho acentuadamente diversos, a depender das características dos migrantes em questão, pondo em xeque princípios fundamentais como o da igualdade.

No entanto, a característica mais importante deste anteprojeto é resultar de uma longa escuta e da ampla participação da sociedade brasileira. Instadas em outras oportunidades a participar da elaboração de projetos de lei, sem que suas propostas fossem tomadas em consideração, as organizações sociais acumulam grande frustração pela persistência do Estatuto do Estrangeiro, que dificulta sobremaneira o seu trabalho, além de suportar o ônus das disfunções do Estado brasileiro em matéria de política migratória. Nossa proposta acolhe demandas históricas de entidades sociais que atuam em defesa dos direitos dos migrantes. Entre elas, destacaríamos a criação de um órgão estatal especializado para atendimento dos migrantes, em especial para gestão do processo de regularização migratória, com o necessário aprofundamento das capacidades do Estado para produção de dados e formulação de políticas públicas relacionadas a esta temática.

Outra reivindicação social de primeiro plano é a concernente aos direitos políticos dos migrantes. Neste particular, nossa Constituição Cidadã, em 1988, não pôde antever que paulatinamente numerosos Estados, inclusive os europeus, passariam a consagrar o direito de voto dos migrantes, em especial nas eleições relativas aos poderes locais. Porém, a inclusão social dos migrantes só será possível quando a cidadania brasileira foi acessível a todos que aqui vivem e trabalham. Dada à limitação imposta pelo texto da Lei Maior, a Comissão rogou ao governo federal que envide esforços para que as Propostas de Emenda Constitucional hoje em tramitação consigam, em breve, suprimir tal anacronismo. No plano infraconstitucional, entretanto, este anteprojeto se encarrega de suprimir as graves restrições ao exercício de direitos políticos promovidas pelo Estatuto do Estrangeiro em vigor.

Por fim, o anteprojeto almejou preparar o Brasil para enfrentar o momento histórico que vivemos, com se novo ciclo de migrações internacionais em decorrência da globalização econômica, cujas diferenças em relação aos ciclos precedentes desafiam os Estados. Na nova era da mobilidade humana, marcada pela mudança dos modos de produção, pela notável evolução tecnológica, que multiplicam vertiginosamente os deslocamentos humanos de curta e média duração para fins os mais diversos, inclusive o trabalho e a reunião familiar, os conflitos armados, os regimes ditadoriais e as mudanças climáticas multiplicam os deslocamentos forçados (não desejados) e as situações de refúgio.

O Brasil soube adaptar-se ao direito internacional dos refugiados ainda na década de 1990, graças à Lei 9.474 de 22 de julho de 1997. No entanto, a confusão entre situações de refúgio e de migração converte a ajuda humanitária em política migratória, com graves consequências para os migrantes, mas também para o Estado brasileiro, reduzindo a cidadania à mera assistência. Ademais, ainda persistem, apesar dos esforços internacionais e nacionais, os casos de apatridia.

O Brasil conheceu recentemente algumas crises agudas, geradas por fluxos pontuais de migração internacional que, na falta de legislação adequada e de políticas dela decorrentes, ocasionaram violações de direitos humanos e um grande desgaste para os governos envolvidos, além de uma imagem negativa da mobilidade humana junto à opinião pública. As crises obnubilam a verdade histórica de que as migrações são grandes riquezas materiais e imateriais para um povo.

Emerge aqui uma questão de grande relevância: quais seriam os ganhos, para um Estado e uma sociedade, da dificuldade de regularização migratória? Os resultados das políticas migratórias dos Estados Unidos e da Europa desfazem o mito de que é possível conter os fluxos de pessoas. A pequena ilha italiana de Lampedusa tornou-se, além de hecatombe humanitária, o símbolo do colapso do modelo europeu.

Burocratizar e restringir a regularização migratória não evita o deslocamento, mas degrada as condições de vida do migrante, que passa, com razão, a temer as autoridades. A precariedade decorrente da ausência de autorização para trabalho e permanência no país é um evidente fator de agravamento do déficit de efetividade dos direitos, não apenas dos migrantes, mas também da população brasileira que com eles convive.

O êxito de sucessivas leis de anistia (sendo a mais recente a Lei 11.961, de 2 de julho de 2009), e igualmente dos acordos de residência firmados no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul), permitiu a inclusão social de milhares de migrantes. Grande crítico das políticas migratórias restritivas dos países desenvolvidos, o Brasil mostra, por meio destes mecanismos, que um novo paradigma migratório é possível. Países vizinhos já demonstraram esta compreensão, como exemplifica a avançada legislação migratória argentina.

Há na proposta incontáveis sugestões, algumas delas literais, de organizações sociais com longa tradição de trabalho junto aos migrantes. Alguns dispositivos correspondem ao que de melhor foi colhido no direito comparado, após exaustivo estudo das legislações migratórias de dezenas de países. O texto inspira-se igualmente no direito internacional, com destaque para a já citada Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, elaborada no âmbito das Nações Unidas.

À guisa de conclusão, sustentamos que, com o advento da democracia, o Brasil tem alterado radicalmente os seus paradigmas jurídicos em diversos campos, inclusive os de árdua resistência cultural e pesada repercussão econômica — leis sobre as relações de consumo e sobre a concorrência, normas ditas anti-tabaco, ações afirmativas etc —, superando continuidades mentais e poderosas pressões, internas e externas, em benefício de mudanças conceituais de tamanho vulto.

É dever imposto por sua multinacional demografia que o Brasil exerça esta coragem no campo das migrações, superando rivalidades institucionais e preconceitos memoriais para tornar-se, em breve, uma referência mundial em matéria de mobilidade humana.

Em pleno século XXI, é preciso, efetivamente, limpar esta “mancha”.


[1] Companhia das Letras, 2004. No texto o autor relata a história de “Rogério”, um ex-exilado que, como repete o personagem constantemente, “enriqueceu”. Um personagem que vive, no pós-exílio, da compra, demolição, construção e venda de imóveis “cariados” – como qualifica. Nesta sanha cotidiana se vê, repentinamente, diante de um imóvel decadente, que se encaixa em seu modelo de ação. Porém, ao nele ingressar, é confrontado com o passado, ainda presente no piso de um dos cômodos. Neste, no carpete, está a marca – “mancha” – da tortura que sofreu nos períodos “áureos” da ditadura civil-militar (à) brasileira. No cotidiano do personagem e, a partir das “descobertas” que este vai fazendo, passado e presente se misturam, insistindo aquele em manter-se “vivo”, por vezes com a conivência de suas próprias vítimas.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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