Crise no Governo Dutra: O ex-chefe da Comissão de Seleção de Imigrantes na Europa cai atirando

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da capa do 'A Noite' de 11 de novembro de 1947, segunda edição.

Trecho da capa do ‘A Noite’ de 11 de novembro de 1947, segunda edição.

O diário governista A Noite de 11 de novembro de 19471 repercute a polêmica na imprensa sobre o tema da imigração. Com a palavra, um dos acusados pela má administração – Arthur Neiva, ex-chefe da Comissão de Seleção de Imigrantes na Europa. As acusações, segundo informa o diário, são de três tipos: (1) os “elementos selecionados” não estavam em condições de saúde satisfatórias; (2) a seleção profissional deixava muito a desejar, tendo sido selecionados tenores, bailarinas, pianistas etc.; e (3) não haviam sido cumpridas as instruções recebidas por Neiva no sentido de enviar 70% de agricultores e 30% de operários especializados ou técnicos.

Neiva explica que a delegação que chefiava trabalha sob um acordo do governo brasileiro com o Comitê Intergovernamental de Refugiados, que subvencionava as despesas de transporte e outros gastos até os portos brasileiros. Neiva acusa “um pequeno grupo” de membros do Conselho de Imigração, que “chegaram ao cúmulo de mentir ao presidente da República”, omitindo dados de modo “plenamente consciente”. Neiva argumenta que, dos 1.732 imigrantes desembarcados das duas primeiras levas, apenas 33 foram julgados em condições insatisfatórias de saúde após “exames rigorosíssimos”. Constitui, afirma, menos de 2% do total, portanto. E dos 33, 22 não eram “elementos de trabalho” – eram “tão somente acompanhantes” (o que a determinação federal permitia).

Neiva argumenta ainda que nenhum dos casos constituía uma gravidade do ponto de vista médico, por não se tratar de “moléstias contagiosas”. Ele se volta para os próprios membros da Comissão, a quem acusa de serem, eles sim, muito condescendentes ao pediram e dispensa de exame radiográfico – que indicaria tuberculose, comum à época – para 50% dos imigrantes. “Está claro que eu não a cumpri, de tal maneira ela era absurda e prejudicial ao Brasil”, defendeu Neiva.

O ex-chefe da Comissão de Seleção de Imigrantes na Europa ironiza a segunda crítica afirmando que em todos os 5 casos apontados – do tenor, da bailarina, do pianista, do pintor e do guarda florestal –, tratavam-se de profissionais qualificados em outras áreas, alguns deles já trabalhando no Paraná. “O pianista é um agricultor, que tem estudos de agronomia, e que trabalha na agricultura no Estado do Paraná; saber tocar piano também não me consta que seja crime”, disse, citando ainda que o guarda florestal sabia falar nove idiomas – inclusive o português – e que, por isso, já estaria trabalhando na Ilha das Flores.

Neiva ataca diretamente, por meio do A Noite, o chefe do Departamento Nacional de Imigração, Péricles de Carvalho – destaca-se que o relato de Neiva é escrito em primeira pessoa, após uma brevíssima introdução do jornal, parecendo-se mais com uma nota de esclarecimentos do que propriamente com um texto jornalístico. Neiva observa que o país sofre o “vexame” de ver suspensas as vindas de agricultores entre as pessoas deslocadas selecionadas na Europa: “Ordem nesse sentido foi dada pela Organização Internacional de Refugiados, com a declaração de que havia dificuldades de absorção desses elementos pelo nosso país”.

Arthur Neiva classifica a situação como “incompetência”, fazendo referência aos agricultores encaminhados para fazendas no interior do Estado de São Paulo, onde “pessoas insuspeitas, da mais alta respeitabilidade e responsabilidade, examinaram as condições ”in loco” mostrando que, em certos casos, o imigrante não ganhava o suficiente nem para o seu sustento, não tinha alimentação adequada e não dispunha siquer de habitação em condições”. Em outro exemplo, Neiva acusa o Departamento e o Conselho de Imigração de enviar de centenas de deslocados para minas sem que fossem mineiros, “selecionados pela delegação que chefiei por serem torneiros, soldados, eletro-técnicos, etc”. Neiva acusa ainda um conselheiro do Departamento de ignorar conscientemente a profissão dos imigrantes.

Neiva vai mais longe, acusando o presidente do Conselho Nacional de Imigração – Jorge Latour, funcionário do Itamaraty – de ignorar sistematicamente os relatórios enviados da Europa e deixando a delegação chefiada por Neiva desprovida de recursos por 5 meses, “constituindo êsses fatos uma demonstração sem paralelo, que eu conheça, nos anais do Serviço Público Brasileiro”.

Ele insiste, finalmente, que as atuais lideranças políticas da área de imigração, na verdade, “sempre foram contrárias à imigração de deslocados”. E acrescenta: “Posso dizer mesmo que são alérgicos à imigração de um modo geral”. É neste ponto que Arthur Neiva concorda com Carlos Lacerda, em seu artigo no Correio da Manhã quatro dias antes: “Pena é que, assim procedendo, hajam feito o jogo da Russia, única potência interessada em desmoralizar os DPs2 como contingentes imigratórios, conforme eu já escrevera em relatórios desde janeiro do corrente ano, por um lado, e prejudicando enormemente o Brasil, que perdeu uma excelente oportunidade de obter imigrantes bons, quase sem despesa, pois cada um dos deslocados aqui aportados custava tão somente Cr$ 70,00 ao govêrno”.

Segundo Neiva, o Brasil perdeu tempo enquanto “os outros países, nossos competidores, escolhem o que há de melhor entre os deslocados na Europa”. Ele conclui seu depoimento ao jornal informando ter pedido exoneração e publicando a carta do presidente da República com elogios aos serviços prestados por Neiva “durante a sua longa permanência naquele Conselho [de Imigração e Colonização], em que ficaram evidenciados sua inteligência, cultura, conhecimento dos assuntos de imigração e devotamento à função”.

O jogo político que ficou evidenciado pela disputa pública – tornada pública pela imprensa, principalmente – entre forças favoráveis e contrárias à imigração confirmou a tese de Lacerda e de outros críticos do governo, que apontavam que o país desejava receber imigrantes apenas dos principais países europeus, como Portugal, Espanha, Itália e Alemanha.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_04&pagfis=49332&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Sigla à época para as pessoas deslocadas pela guerra.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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