Conferência internacional do Rio, em 1927, expõe divisão entre sul-americanos e europeus

Por Gustavo Barreto (*)

Ao final, no entanto, países se entendem por meio de um documento tipicamente diplomático: amplo o suficiente para não definir nada, em última instância.

O banquete final do encontro, oferecido pelo governo brasileiro, foi realizado no Automovel Club, no Rio de Janeiro. Foto no Jornal do Brasil de 10 de setembro de 1927.

O banquete final do encontro, oferecido pelo governo brasileiro, foi realizado no Automovel Club, no Rio de Janeiro. Foto no Jornal do Brasil de 10 de setembro de 1927.

No dia 6 de setembro de 1927, o jornal O Globo relata o debate ocorrido na Conferência Parlamentar Internacional de Comércio, que debateu em uma de suas comissões – a primeira e, talvez, a mais importante – o tema dos trabalhadores migrantes. O encontro – aconteceu na Câmara da capital federal brasileira, Rio de Janeiro – envolvia países das Américas e da Europa, como Itália, França, Inglaterra, Argentina, Uruguai, Bélgica e Brasil, entre outros.

Um senador italiano – identificado como “senador Pavia” – reclama sobre a situação dos imigrantes em temas como saúde, propriedade rural e, inclusive, “o direito de falar á sua geração a lingua materna”. Pavia aparentemente reclamava do idioma utilizado na própria conferência, o espanhol. Representantes da Polônia e Hungria, aponta o diário carioca, concordaram com o colega italiano.

Uma das falas é do ministro francês da Agricultura, classificado pelo jornal como um “orador emotivo”. O representante da França teria afirmado, segundo o diário: “Não viemos aqui para simplesmente admirar essa bella natureza. Devemos agir. É preciso sair qualquer cousa util dessa assembléa”.

A matéria, claramente a favor dos países sul-americanos – publicada sob o título “Os chefes das deleguações uruguaya e argentina impugnaram as conclusões do senador Pavia sobre a immigração” –, destaca a participação do representante uruguaio – o presidente da Câmara dos Deputados Italo Eduardo Perrotti –, que critica os métodos da conferência ao lembrar que somente nove das 35 nações sul-americanas estão representadas. O diário carioca adjetiva as observações de Perrotti: “precisas” e “severas”.

Para além da questão menor do idioma na conferência, Perrotti rebate as acusações de que os imigrantes europeus seriam maltratados: “O parlamentar uruguayo, falando em francez, manifesta-se com emphase, estranhando que se ignorasse tanto o que vae pela America no trato do immigrante e acrescentando não compreender como o senador italiano se animasse a tanto pleitear”.

Pavia retruca com uma reivindicação bem objetiva: queria que fosse criada uma comissão internacional de controle da colonização “para os effeitos de permutas commerciaes”. O uruguaio “replica energicamente” – relata O Globo – afirmando que a medida é inconstitucional no Uruguai. Ao final, Perrotti pede desculpas pela “maneira franca como divergira” e procura acalmar os ânimos afirmando origem migrante: seus pais são italianos.

O chefe da delegação argentina, Agustin Araya, também toma a palavra. “Tambem fala em francez e com apurada elegancia de expressões”, observa o diário carioca, que completa: “É um outro feitio de espirito. Sente-se que ha em frente, um professor. E mais que um professor: é um fino sisudo diplomata que se exprime”.

Após os pomposos elogios, o raciocínio de Araya sobre a posição do colega italiano é descrito da seguinte forma, no melhor estilo da diplomacia: “O Sr. Araya diz com elegancia que na these ha questões moraes. E estas não são mais que categorias de idéas. Com cada categoria pode comportar uma multiplicidade de valores, são as conclusões do relator italiano admissiveis, pelo menos para debate”.

Araya, nesta particular descrição do diário, consegue criticar a posição de Pavia de forma “serena” e “enérgica”, ao mesmo tempo. O argentino fundamentalmente afirma que a Itália deveria se preocupar mais com assuntos internos – citando alguns deles –, além de ver nas conclusões do italiano “um perigoso imperialismo, que estava a resurgir”.

Durante os debates, a França – relata o jornal – passa a aplaudir a posição sul-americana. “O senador Pavia pretende interromper o orador, mas o Sr. Araya o adverte que o deixe falar, estando disposto a ouvir tranquilamente, depois, ao relator geral.”

Araya defende as políticas públicas migratórias não só na Argentina, mas em toda a “América”, por mais de meia hora: “Têm a passagem paga, accomodações no porto de chegada, hospedaria, contrato de trabalho. O Estado faz mais. Lembra o que se passa em Santa Fé, onde os colonos encontram tratos de terra, de que se tornam proprietarios. Tem assistencia medica, têm instrucção. Ha ainda uma legislação economica abudante a ampara-los, como os impostos progressivos e decrescentes, para combater as grandes propriedades e incentivar as pequenas. Ha ainda o credito agricola. A proposito o Sr. Araya lembra que uma propria cooperativa italiana tem ramificação na Argentina”.

Após mais um debate regimental sobre se a questão deveria ser votada imediatamente ou não, a posição do parlamentar italiano foi novamente derrotada, e a decisão postergada.

O Jornal do Brasil de 10 de setembro de 1927 fala sobre os debates da sexta-feira, dia 9, no encontro. Registra em sua manchete que “transcorrem animados os debates nas comissões e no plenário”, anunciado que foi “adoptada uma formula conciliatoria” sobre a “questão momentosa da immigração”.

“As controversias suscitadas entre as delegações da Argentina e do Uruguay, de um lado, e a da Italia, de outro, foram afinal resolvidas, satisfatoriamente, para todos”, diz o JB, que registra que, antes da conciliação relativa a uma discussão sobre “soberania”, ocorreu um “pequeno incidente”. Segundo a matéria: “Esse incidente consistiu consistiu no desapparecimento da redacção das conclusões que enfeixavam em formula conciliatoria, todas as opiniões em choque, referentes ao problema de vantagens e obrigações que os paizes immigratorios devem dispensar aos emigrantes que recebem”.

Após a realização de uma reunião secreta, presidida pelo delegado da Bélgica, os países elaboraram a redação final, com os trabalhos sendo encerrados. No entanto, diz o JB, “o papel que considerava taes conclusões tinha desapparecido”. Em vez de ser lido o combinado entre as partes, registra o diário carioca, “foi lida cousa diversa…”. Pelo que registra o jornal, os protestos sobre tal mudança vieram das delegações sul-americanas, principalmente argentina, uruguaia e peruana.

O Brasil, liderada à época pelo ministro do Exterior, Octavio Mangabeira, “tomava attitude discreta, de prudente expectativa, aguardando a vez mais oportuna”. E, ao final, diz o jornal carioca, “chegou-se hontem a uma solução satisfatoria para todos”. O JB anuncia ainda que foi convocado para Cuba, em abril de 1928, uma conferência especial apenas sobre o tema da imigração. “Nessa occasião, então é que o problema parece terá solução definitiva.”

Nos debates da conferência, o representante peruano registra, por exemplo, que “não se poderia admittir o principio de obrigar aos filhos dos immigrantes a adoptarem o idioma nativo; acredita que haja no relatório elaborado pelo Sr. Pavia [da Itália] conceitos que impliquem diminuição de soberania dos paizes de immigração, com que o Peru e demais potencias da America não poderão concordar”. A delegação peruana considera o imigrante – registra o JB – “como factor humano intellectual e material e, harmonizadas essas qualidades, será o factor para a grandeza e o desenvolvimento daquella nacionalidade”.

O representante francês apresenta uma emenda: “Pensa [o delegado francês] que a protecção aos trabalhadores deve também attingir aos intellectuaes”. A emenda francesa é então apresentada “no sentido de serem estes nitidamente definidos e comprehendidos nas estatisticas de emigração e de immigração, nas quaes acha deve figurar a categoria de cada um”.

O representante argentina toma a tribuna, então, para ler uma proposta que diz ter apoio de todos os países sul-americanos, dos EUA e da França. O representante brasileiro – Paulo de Frontin – intervém para declarar que “dirá opportunamente as razões pelas quaes o Brasil não assignou o mencionado documnento”.

A proposta argentina faz as seguintes recomendações, segundo registra o Jornal do Brasil:

  1. “que o os paizes juridicamente organizados e na plenitude de sua soberania não possam acceitar para o emigrante regimen de excepção que o ponha fóra da legislação e jurisdicção do paiz para o qual vae”;

  2. “que a condição do estrangeiro em geral e do immigrante em particular corresponde á legislação interna de cada paiz”;

  3. “que os tratados internacionaes relativos ao emigrante não possam ter mais obrigações do que aquelas dadas em direito aos contratos bilaterais”;

  4. “que haja interesse na boa ordem internacional”;

  5. e que “todo paiz de immigração assegure egualdade de direitos civis a nacionaes e estrangeiros”.

Após a exposição do argentino, o representante italiano declara “não ter objecções a fazer quanto à proposta encaminhada” por ser esta nada mais que “o reconhecimento do respeito ao direito de soberania”.

O presidente da Conferência é belga – o país, registra o próprio delegado, não mais do que uma centena de imigrantes no Brasil, por exemplo. A Bélgica, no entanto, é um país de imigração, segundo seu representante, “a qual orça por 40 a 50 mil individuos que para lá se dirigem á procura de trabalho”. O delegado belga participa do debate no Rio. Diz compreender bem o princípio da soberania, mas “pensa, no emtanto, haver uma concepção de soberania nacional de certa fórma exagerada e que entra em conflicto com os interesses da humanidade”.

Um dos princípios, cita ele por meio da matéria no Jornal do Brasil, é o da igualdade dos imigrantes em relação aos nacionais “no que se prende aos direitos civis”, e que “medida nenhuma contra a liberdade do immigrante seja tomada”. O belga faz alusão a uma suposta frase de Pascal: “A humanidade é um homem só”. E cita uma teoria italiana – sempre segundo o diário carioca – segundo a qual o impasse mundial é igual ao “principio de physica relativo aos vasos comumunicantes, tanto a respeito da mão de obra como acerca dos capitaes”1.

Paulo de Frontin era o próximo a falar e, segundo o registro do diário carioca, era grande a expectativa para conhecer a posição brasileira, que até então permanecia em cima do muro. O delegado brasileiro expõe as posições divergentes, registrando no entanto que a posição italiana nunca procurou restringir o conceito de soberania, citando o inusitado princípio de que “cada qual deve ser dono de sua casa”. Para o delegado brasileiro, citado pelo JB, a imigração é um “problema primordial”, pois a “densidade de sua população é ainda muito reduzida”. Seriam três os aspectos da questão, sustenta a posição brasileira: a colonização, a povoação e o cultivo do solo.

O representante dos Estados Unidos, falando em francês, afirmou que o primeiro censo federal da história de seu país indicou que existiam lá 4 milhões de habitantes e, em vista disso, “abriram-se as portas para todo mundo, e em resultado, inumeras nações vieram povoar o paiz e tornarem-se seus melhores auxiliares”. Decorridos “centro e pocuos annos”, completa, “a população total excedia de cento e seis milhões, ou sejam, vinte sete vezes mais”. Em seguida, o país “achou, então, de bom alvitre restringir a entrada de immigrantes”, o fazendo por meio de medidas legislativas.

A posição norte-americana se solidariza com as “nações do Velho Mundo”, que têm excesso de população e ficariam “na mesma situação dos paes que vêem seus filhos partir e desejam acompanhal-os com o seu carinho”. Ao mesmo tempo, o delegado afirma que “de accordo com a lei internacional, todas as nações têm o direito de excluir ou limitar a entrada de immigrantes, ou definir as condições em que a permittem ou desejam”. O delegado norte-americano diz ainda aceitar a “doutrina de que, quando um cidadão quer transferir sua residencia para outra nação, implicitamente se submete á bandeira e á jurisdicção da terra que adopta” e “naturalmente o paiz que recebe o immigrante está na obrigação de protegel-o em comum com os nativos”.

A edição do JB deste dia – 10 de setembro de 1927 – publica as “conclusões aprovadas”, como chama o diário. No formato de recomendações, no que diz respeito estritamente à questão da imigração, são elas:

  1. Os Estados presentes devem estabelecer estatísticas em matéria de emigração e imigração, segundo métodos “tão idênticos quanto possível”, além de recomendar melhorias “reconhecidas necessárias” nas estatísticas da Organização Internacional do Trabalho – ou “Bureau Internacional do Trabalho”;

  2. “Que nas Comissões Internacionaes de estudo sobre as migrações humanas, a representação dos paizes de emigração e de immigração seja assegurada em base de perfeita egualdade, devendo a presidencia dessas Comissões tocar a um paiz que seja directamente interessado nas soluções estudadas”;

  3. Que entre o país de emigração e o de imigração se estabeleçam relações comerciais “tão activas quanto possivel”, por meio de “tratados commerciaes particulares”;

  4. A sugestão francesa: as estatísticas devem conter “diversas categorias de trabalhadores intellectuaes, que devem estar nitidamente definidas, sejam de ora em diante comprehendidas e que estas estatisticas sejam, tanto quanto possivel, completas por informações dando a conhecer quaes são os differentes empregos para trabalhadores intellectuaes, que podem ser offerecidos por certos paizes e aos outros podem suprir”;

  5. O item 5, em continuidade ao 4, pede que os “Estados interessados” garantam a estes trabalhadores intelectuais a possibilidade de exercer suas atividades fora do país de origem;

  6. As convenções relativas à emigração e imigração não podem, concordam os países da conferência, impôr a um país “juridicamente organizado e gozando da plenitude da sua soberania” medidas de “natureza a subtrahir o immigrante á legislação e á jurisdicção do paiz ao qual elle se incorpora”;

  7. Toda e qualquer resolução sobre o tema da migração internacional deve ser inspirado por um “duplo” princípio, diz o texto: da “egualdade de direitos civis entre os nacionaes e os estrangeiros”; e da “qualidade de homem livre que deve ser reconhecida a todos os emigrantes, devendo os direitos e a dignidade da personalidade humana ser respeitados por toda a parte e protegidos, sem aliás, de qualquer modo affectar a soberania de cada Estado no interior de suas fronteiras”;

  8. O texto recomenda ainda que a “condição geral do estrangeiro em geral e do immigrante em particular, residente em um Estado, fica subordinada á legislação interna de cada paiz”;

Observa-se que a conferência internacional era sobre comércio, ocupando-se de dois grandes temas – a migração internacional e o crédito agrícola. Nota-se ainda que o documento final é tão amplo que não se tira daí qualquer decisão aplicável, dado o alto grau de importância que é dada à soberania – e cabendo aos governos nacionais, portanto, redefinir sem qualquer critério internacional sua política imigratória interna.

NOTA

1 Sobre a teoria dos vasoso comunicantes, basta acessar a explicação genérica exposta no Wikipédia, vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Vasos_comunicantes

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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