Brasil imigrante: o colono é a melhor propaganda. Uma tese de 1882

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da edição anual de 1882 d'O Auxiliador da Industria Nacional

Trecho da edição anual de 1882 d’O Auxiliador da Industria Nacional

A edição anual de 1882 da revista O Auxiliador da Industria Nacional traz uma longa análise histórica de um colaborador – assina o Coronel Engenheiro Bacharel Paulo José Pereira – com o título “Propaganda para a immigração”. Pereira argumenta em linhas gerais que a propaganda mais eficaz, com o fim de incentivar a emigração europeia para o Brasil, é “e sempre será” exercida pelos imigrantes e colonos.

Em texto endereçado ao Clube de Engenharia e publicado nesta revista, editada pela influente Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, o autor remete a “breves considerações offerecidas aos senhores capitalistas nacionaes e estrangeiros”, feitas sete anos antes, em 2 de agosto de 1875:

“É fóra de toda a duvida que não basta medir terras e dá-las ou vendê-las aos immigrantes. Portanto a casa, a ferramenta, o sustento, o vestuario, o tratamento em casos de molestia, a instrucção aos menores, o culto religioso conforme as crenças, os meios de transporte para o serviço da colonia, a administração com o pessoal indispensavel, emfim, tudo, entende o abaixo assignado que convem conceder-lhes para que, assim tratados, não só desenvolvão as colonias, como sejão os arautos que o paiz precisa para apregoarem as vantagens da colonisação do Brazil”1.

O autor cita um documento de 1878 em que o órgão governamental responsável pelo tema, a Inspetoria Geral de Terras e Colonização, afirma apoiar a imigração espontânea e que, justamente por ser ela espontânea, não deve depender da ação unilateral dos governos: “(…) o immigrante vai para onde o chamão conveniencias do seu interesse”, em grande parte confirmando a tese de que imigrantes bem tratados atrairão outros imigrantes. O autor do artigo lamenta que o governo, mesmo diante do relatório citado, nada tenha feito na prática.

Um relatório da mesma Inspetoria, do ano seguinte, reafirma os “favores” com que contavam os imigrantes espontâneos – estadia na chegada, transporte para as colônias, a venda de terras a prazo, o apoio com ferramentas e as primeiras sementes, além de uma diário de 400 réis para os adultos e a metade para os “menores”, durante os seis primeiros meses. “Em 1879 ainda nada fez o governo com relação ás idéas do seu delegado, pois tudo continuou como antes!”, reclama Pereira. O artigo cita uma série de recomendações de planejamento, como o loteamento e preparação anterior das áreas a serem colonizadas, citando – como de costume – o progresso feito nos Estados Unidos ao adotar tal planejamento.

Apesar de o governo apoiar alguns estabelecimentos privados para a estadia de imigrantes, a hospedaria da Ilha das Flores, na Baía de Guanabara – o primeiro estabelecimento deste tipo administrado pela Corte imperial –, só seria aberta oficialmente em janeiro de 1883 (leia mais abaixo).

Em um documento de 7 de abril de 1880, cita o autor, o governo corta gastos e, ao mesmo tempo, anuncia que apresentará um projeto de reforma para a área, “logo que julgar opportuno”. As medidas de infraestrutura para a colonização terão, diz o governo, “em cada anno, o desenvolvimento compativel com os recursos que especialmente fôrem solicitados do Poder Legislativo”.

Trampolim: funcionários em momento de lazer. Leopoldino Brasil, que trabalhou na hospedaria de imigrantes da Ilha das Flores até 1955, está de calção vermelho e touca rosa. Baía de Guanabara, sem data, autor desconhecido. Coleção Leopoldino Brasil. Disponível em hospedariailhadasflores.com.br

Trampolim: funcionários em momento de lazer. Leopoldino Brasil, que trabalhou na hospedaria de imigrantes da Ilha das Flores até 1955, está de calção vermelho e touca rosa. Baía de Guanabara, sem data, autor desconhecido. Coleção Leopoldino Brasil. Disponível em hospedariailhadasflores.com.br

Uma das promessas feitas pelo governo é a hospedagem do imigrante por no máximo dez dias, até a escolha do local de destino. O autor reage: “O immigrante não pode, em dez dias, dar preferencia a esta ou áquella Provincia, a este ou áquelle ponto de desconhecida Provincia, porque não conhece o Brazil! Nem o nacional poderá jámais fazer, quanto mais um estrangeiro! E, se no fim dos dez dias não tiver feito essa obrigada escolha, irá mendigar nas ruas?!…”

Chegando ao ponto escolhido, o imigrante encontrará “cerrada matta virgem”, composta – ironiza – de árvores seculares e “outras, que, por não serem seculares, não deixam de tomar espaço”. E dispara: “Mas com que instrumentos desbravará o terreno?!… Com as unhas?!… com os dentes?!… Onde ha de elle abrigar-se do sol, da chuva e do sereno?!… Como se ha de alimentar?!… Com raizes, com folhas ou com fructos para elle desconhecidos?! Adoece?!… Quem o trata?!… Morre?!… Quem o enterra?!… É possível colonisar-se assim?!…”

Em novo relatório de 30 de novembro de 1881, a Inspetoria finalmente levanta a possibilidade de construir um edifício para a hospedagem de imigrantes, devendo ser preferencialmente localizada em uma das ilhas da baía – orgulhosamente o autor do artigo diz ter sido “ideia nossa” – com o objetivo de reunir condições higiênicas e a facilidade de embarque e desembarque. Diz um trecho do documento: “Não temos por emquanto necessidade de um edificio igual ao Castle-Garden2 dos Estados-Unidos, pois mui longe estamos, infelizmente, de alojar 300,000 individuos no decurso de um anno; mas convem crear estabelecimento que áquelle se assemelheem logar e com proporções que permittão seu desenvolvimento á medida que as circumstancias exigirem”.

A Inspetoria Geral de Obras Públicas, informa o governo por meio da nota, seria o responsável pela construção do prédio, em acordo com a Inspetoria Geral de Terras e Colonização e a Junta Central de Higiene Pública. O Ministério da Agricultura recomendara as seguintes ações, a serem solicitadas pela Inspetoria no orçamento referente ao exercício dos anos de 1882 e 1883:

  1. Crédito para a construção da hospedaria, com capacidade para o movimento anual de 50 mil imigrantes;
  2. Recursos para a hospedagem, por meio de contrato com terceiros, de 40 mil imigrantes, sendo o período máximo de hospedagem de 8 dias;
  3. Recursos para o transporte de 30 mil imigrantes da Corte para as províncias;
  4. Recursos para a aquisição de terrenos à margem de ferrovias, de estradas de rodagem e de vias navegáveis, nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo;
  5. Recursos para a medição e demarcação de terras devolutas e à construção de caminhos de acesso a estas terras;
  6. E, por fim, recursos para a própria Inspetoria Geral de Terras e Colonização.

Ao não subsidiar os colonos nos primeiros meses de estadia, o autor critica o plano de governo ao considerar que ele emancipa as colônias, e não os colonos. O debate sobre financiamento percorre toda a segunda metade do século 19 e início do 20, com a imprensa ligada aos ruralistas pleiteando cada vez mais recursos por imigrante e, na maior parte das vezes, sendo bem-sucedida.

Vista do cais de entrada da Hospedaria de Imigrantes. Embarcações próximas ao atracadouro. Ao fundo o pavilhão de recepção da Hospedaria. Ilha das Flores, sem data, autor desconhecido. Coleção Leopoldino Brasil. Disponível em hospedariailhadasflores.com.br

Vista do cais de entrada da Hospedaria de Imigrantes. Embarcações próximas ao atracadouro. Ao fundo o pavilhão de recepção da Hospedaria. Ilha das Flores, sem data, autor desconhecido. Coleção Leopoldino Brasil. Disponível em hospedariailhadasflores.com.br

Destaca-se que a Ilha das Flores, onde funcionou a primeira hospedaria de imigrantes da Corte, passou a funcionar oficialmente a partir de janeiro de 1883 – no ano seguinte ao artigo. No entanto, há indícios de que suas atividades tiveram início em 1879, quando foi aberto o primeiro livro de registro de imigrantes3.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=302295&pagfis=23663&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Também conhecido como “Castle Clinton” ou “Fort Clinton”, atualmente um monumento histórico nacional.

3 Para mais sobre o tema, vide http://www.hospedariailhadasflores.com.br/historico_item_02.asp. O primeiro livro de registros da Hospedaria da Ilha das Flores, segundo o Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, encontra-se no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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