Após acordo com a ONU, chegam ao Brasil ‘deslocados europeus’: ‘uns desconfiados, outros indiferentes, mas todos parecendo satisfeitos’

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da capa do jornal A Noite de 17 de maio de 1947

Trecho da capa do jornal A Noite de 17 de maio de 1947

O governista A Noite publica com destaque na primeira página de sua edição de 17 de maio de 19471 uma matéria intitulada “A primeira leva de imigrantes dirigidos”, informando que chegaram pela embarcação da Marinha norte-americana “General Sturgis” 861 “deslocados” europeus – as aspas inclusas na edição – de origens austríaca, polonesa, tcheca, ucraniana, armênia, alemã e balta. O jornal informa que todos estão “em excelentes condições físicas” e que fazem parte dos 5 mil “já selecionados na Europa” – mais especificamente na Áustria e na Alemanha – por uma missão brasileira. Eles desembarcaram na hospedaria da Ilha das Flores e seguirão para São Paulo, diz o A Noite.

O topo da página é ocupado com quatro fotos dos imigrantes em sequência, com a seguinte legenda: “Fotos dos imigrantes feitas a bordo do ‘General sturgis’. Othon Gansler, alemão, ao lado de sua esposa (a de óculos) que espera um filho no próximo mês, palestra com o repórter; uma família de russos da Ucrânia; bel tipo de lituana; com suas bagagens às costas, aguardam na fila a ordem de desembarque”.

O jornal informa que a “vinda dessa primeira leva de ‘deslocados’ europeus resulta de um acôrdo firmado entre o govêrno brasileiro e o Comité Inter-Governamental de Refugiados, órgão das Nações Unidas especializado nos assuntos de imigração”. Segundo informa o A Noite, todo o transporte e manutenção dos 5 mil deslocados da Europa será pago pelo comitê da ONU, “que dispõe de vários navios da Marinha norte-americana para tal fim”.

A maioria dos imigrantes, diz o periódico, eram de origens austríaca, polonesa e ucraniana. “Antes que começasse o desembarque, a reportagem de A NOITE esteve a bordo, travando contato com aquela multidão de homens, mulheres e crianças dos mais variados tipos e raças. Moços e velhos, mães e filhos, uns desconfiados, outros indiferentes, mas todos parecendo satisfeitos, cada qual com um cartão de identidade dependurado ao peito, acotovelavam-se aguardando a ordem para o desembarque”, descreve o jornal.

Se na primeira página o A Noite descreveu uma fila ordenada, na parte interna da edição fala em “algazarra infernal, onde dezenas de idiomas eram ouvidos”. Ao visitar o “deck” superior, relata, “encontramos centenas de imigrantes com suas bagagens às costas, pobremente vestidos, embora todos fisicamente robustos”. E conclui: “Todos os imigrantes chegados ôntem estão, porém, em excelentes condições de robustez física”.

Na fila, a reportagem informa ter encontrado uma autoridade – o Dr. Pericles Carvalho, do Conselho Nacional de Imigração e Colonização – “palestrando” com uma família de poloneses da Ucrânia. O pai, “homem de meia idade”, a “tez castigada pelo sol”, um “bigode espetacular” e “falando o alemão”. O imigrante indaga sobre o clima no Brasil, pergunta sobre as condições de trabalho e, em seguida, “segurando a esposa pelo braço, a qual carrega às costas volumosa bagagem, diz que ela também deseja trabalhar no campo”.

Um casal alemão – Othon e Aino Gansler – relatam os tempos difíceis na Alemanha. Othon relatou ter sido prisioneiro por três anos em Nuremberg, onde trabalhava como operário em uma tipografia, tendo perdido os pais e dois irmãos. “Agora pretende começar nova vida, longe de sua pátria, lutando para afastar da mente todo o sofrimento e dor que sofreu durante a catástrofe”, afirma o jornal, que relata que ele não se importa “se tiver de ir mesmo trabalhar no campo”. O importante, continua, “é ter deixado a faminta e devastada Alemanha e conseguir trabalhar, seja como for”. E essa disposição para o trabalho “parece aumentar quando êle diz que sua esposa espera um filho no próximo mês”.

Outra família descrita é uma de russos católicos: “Uma mulher de mais de quarenta anos, muito forte, dentadura perfeita e quatro homens, todos ultrapassando os trinta, constituem essa família da Ucrânia Russa. São russos brancos, nascidos na Ucrânia e que conseguiram deixar sua pátria antes do domínio da U.R.S.S. Foram morar na Ucrânia Polonesa e são católicos”.

A maioria dos imigrantes são agricultores e operários especializados e, segundo o jornal, o acordo com a ONU determina que 30% fosse de técnicos e operários e 70% de agricultores e “homens do campo”. Mesmo governista, o diário admite que “não se pode dizer que tal seleção tenha sido absolutamente rigorosa nesse particular”, com alguns imigrantes “que nunca foram outra coisa na vida do que empregados de hotel”.

Um funcionário brasileiro afirmou que uma missão prévia havia visitado, em Frankfurt, na Alemanha, os assim denominados “Displaced Camps” – segundo o representante brasileiro, havia naquele momento dezenas desses campos, “onde milhares de homens, mulheres e crianças aguardam a sua própria sorte completamente inativos”. O jornal relata, no entanto, boas condições sanitárias – o que evidentemente não pode ser checado imediatamente, dada a oficialidade da fonte. Segundo o A Noite, algumas das antigas instalações nazistas foram transformadas em hospitais, e os campos eram administrados pelos aliados.

O jornal registra que a seleção da Missão brasileira ficou restrita às áreas sanitária e social. “Quanto à seleção política, a Missão Brasileira não teve a menor interferência, pois só vão para os ‘campos de deslocados’ os elementos que tenham sido rigorosamente observados pelos aliados”. Os 5 mil imigrantes são das zonas de ocupação norte-americana, inglesa e francesa, devido ao acordo com o comitê da ONU.

 * * *

Poucos meses antes, em 27 de janeiro de 19472, o A Noite registra a chegada do “Argentina”, embarcação que trazia 1.200 passageiros de Gênova, entre os quais uma ex-liderança fascista, o Duque D’Aosta – o principal interesse do repórter, que soube que o italiano tinha intenção de fixar residência no Brasil. Os imigrantes estava todos na terceira classe, informa o diário – o Duque não é tratado como tal. Entre os passageiros de terceira classe, informa o jornal, estão 104 padres “pertencentes a diversas congregações religiosas de Roma”, vindo se fixar uns no Rio, outros no interior.

O jornal informa ainda que embarcaram em Gênova cem imigrantes, a maioria italianos – aparentemente os padres também não são tratados como imigrantes pela reportagem –, destacando que essa é a segunda leva de imigrantes que chega ao Rio em um período de apenas 20 dias. No total, serão mil italianos que deverão emigrar para o Brasil “sob a recomendação da Santa Sé” – o nome oficial do Estado do Vaticano. “Embora não seja em grande número, desta vez vieram agricultores e alguns técnicos para a lavoura. Entretanto, a maioria é constituída de comerciários, alguns diplomados em odontologia e advocacia, enfim, gente que se destina aos grandes centros”, observa o A Noite, que completa: “Todos são moços ainda, variando as idades entre 20 e 35 anos”.

Apesar de o objetivo principal da reportagem ser a entrevista com o ex-líder fascista – no que foram bem-sucedidos –, o diário faz uma descrição do momento em que a embarcação chega ao porto do Rio. “Gente de toda espécie, de várias nacionalidades, homens, mulheres e crianças, muitas ainda no colo de suas mães, mas todos acordados”, observa o repórter, chegando a comparar a embarcação com um jardim de infância, tamanha era a quantidade de crianças nas três classes.

O repórter vai até a terceira classe, “onde estavam os que viajavam como imigrantes”. Ele descreve: “Todos se mostravam satisfeitos, embora alguns, debruçados na murada do navio, permanecessem aparentemente apreensivos, talvez pensando no futuro, na nova vida que iriam iniciar longe de sua pátria”. As perguntas são feitas tanto pelo repórter aos imigrantes quanto o contrário. “Quase todos deixaram a Itália pela dificuldade de vida que há ali atualmente, onde a falta de trabalho é imensa. Alguns, entretanto, vêm simplesmente pelo espírito de aventura, confiantes na nossa hospitalidade”.

São jovens, diz, cujas famílias “se desmoronaram com a guerra”, entre os quais algumas moças “cujo desejo de atingir um outro nível de vida parece ser o principal motivo que as trouxe ao Brasil”. Grande parte, continua o repórter, é de homens que perderam tudo com a guerra. “possuindo, atualmente, apenas uma esposa e dois ou três filhos, todos em extrema dificuldade financeira”.

NOTA

1 Páginas 1 e 9 da edição, disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_04&pagfis=46220&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=348970_04&PagFis=44521&Pesq=

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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