1975: Itamaraty cria facilidades para ‘imigrantes angolanos’ – os brancos e ‘patrícios nascidos em Angola’

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho do jornal O Globo, edição de 5 de outubro de 1975

Trecho do jornal O Globo, edição de 5 de outubro de 1975

Os salões do andar térreo do Palácio Itamaraty, sede da representação do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, estão recebendo um movimento incomum, descreve o jornal O Globo em sua edição de 5 de outubro de 1975: “Lá, conversando alto, brincando uns com os outros e reclamando da burocracia no Brasil, imigrantes portugueses e angolanos esperam, numa enorme fila, o momento de serem atendidos pelo Grupo Tarefa encarregado de facilitar o desembaraço de suas documentações”. O contexto é tão evidente que nem sequer é comentado no início da matéria: Angola passava por seu processo de independência de Portugal e se tornaria oficialmente um Estado soberano no dia 10 de novembro de 1975.

O Grupo Tarefa, explica a matéria, conta com representantes de diversas áreas do governo – os ministérios das Relações Exteriores, Trabalho, Saúde e Justiça, além do Instituto Félix Pacheco (de registro civil) e do Incra (terras e colonização) – e busca facilitar o processamento de toda a documentação necessária ao imigrante. O jornal relata que o Grupo trabalha intensamente – são cem atendimentos por dia, a capacidade operacional máxima – por conta da “chegada de grande número de imigrantes portugueses e angolanos ao Brasil”.

Um dos funcionários do Grupo Tarefa, o médico Camilo de Moura, da “Saúde dos Portos”, é segundo o jornal o “encarregado de examinar os imigrantes”. Em um comentário feito ao jornal, aparentemente seu “exame” vai muito além da medicina. Diz o médico: “Praticamente todos têm excelente nível de escolaridade, e aparentemente boa saúde. Muitos, entretanto, precisam de umas boas lições de educação, pois ainda nem chegaram direito e já estão reclamando de tudo”. Ele acrescenta, em um tom aparentemente ameaçador: “O Brasil os está recebendo de braços abertos, mas ninguém os chamou para cá. Isso é [o] que precisam entender”.

O jornal destaca os “apelos” das entidades filantrópicas portuguesas e luso-brasileiras, que organizavam uma “cadeia de solidariedade” para “sensibilizar a colônia portuguesa no Rio de Janeiro”. O jornal carioca registra: “Um diretor dessa federação pediu ao O GLOBO para fazer três apelos aos portugueses radicados na cidade: oferecer empregos aos patrícios nascidos em Angola; alojá-los em suas casas, se possível; e, principalmente, eliminar a exigência de fiador para os imigrantes que pretendem alugar casas no Rio, de propriedade de portugueses”.

O presidente de um hospital de propriedade de portugueses no Brasil “fez questão de elogiar”, descreve o jornal, o “sentimento humanitário que o Governo brasileiro vem demonstrando, ao cuidar do problema dos imigrantes portugueses nascidos na África”. Esta fonte – novamente não identificada, assim como o “diretor” de uma federação – afirma na matéria que queria tornar “mais abrangente” o apelo: “não apenas à colônia portuguesa, mas também a toda a população carioca, para que se una nesse movimento de solidariedade em favor de seres humanos que acabam de perder a pátria”.

Os imigrantes “angolanos” do título da matéria eram, portanto, quase todos portugueses colonizadores – e para estes foram criadas todo o tipo de facilidades. Como a maioria chegou apenas com o passaporte em mãos, sem o visto consular, as autoridades brasileiras estavam “estudando uma fórmula que permita, em caráter excepcional, eliminar algumas exigências, especialmente quanto à obtenção de determinados documentos no país de origem”. A primeira facilidade, informa a matéria: o próprio visto de entrada, que passou a ser concedido no Brasil porque “o Consulado brasileiro em Angola funciona precariamente”. O jornal informa que “todas as funcionárias [sic] já foram retiradas”, contando o Consulado com apenas “dois servidores”.

O jornal O Globo dedica uma parte considerável da matéria para a explicação minuciosa sobre as formalidades para obtenção do visto provisório. Em tom extremamente didático – a matéria chega a pontuar os passos a serem seguidos –, o jornal também descreve o que precisa ser feito para obter o visto de permanência definitiva no Brasil (o temporário é de apenas 180 dias). A descrição, apesar de bem resumida, expõe a dificuldade evidente que é para um estrangeiro de se legalizar no país.

Para os angolanos – os brancos que deixaram Angola em meio ao processo de independência –, no entanto, alguns processos foram facilitados. Além da já mencionada reunião de todas as estruturas de governo necessárias para a obtenção do visto temporário em um só lugar, o jornal informa que o governo estava “estudando” rever uma das exigências – o atestado de antecedentes do país – dado que a “maioria dos imigrantes que estão chegando afirma não ter condições de obter esse documento ao sair”.

O ministro-chefe do Itamaraty no Rio explica ao O Globo que os “entraves burocráticos” estão sendo “minimizados” de forma a “facilitar a legalização no País dos imigrantes angolanos”. Uma das primeiras tomadas pelo Itamaraty, informa o diário carioca, foi a de “afastar os despachantes”, com os documentos só podendo ser tratados a partir daquele momento pelos próprios interessados, “que dispõe de vários pontos de informações no local, além de terem sido afixados nas paredes cartazes informativos”. A adoção da medida veio após as autoridades terem tomado conhecimento – relata o jornal – de que “alguns despachantes estavam cobrando até Cr$ 5 mil para acompanhar a tramitação dos documentos”.

O jornal traz uma seção com depoimentos dos que deixaram Angola, entre os quais o de uma das três funcionárias do Consulado brasileiro “removidas” para o Brasil. Diz ela: “Não pretendo fazer qualquer pronunciamento político, nem falar nada que possa ser interpretado como uma hostilidade ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), pois nasci em Angola, e pretendo voltar lá um dia”. Com o “estado de guerra” e os civis entre “fogo cruzado”, a imigrante afirma querer regressar “à minha terra” quando as coisas voltarem ao normal – e “queira Deus que elas voltem ao normal”, afirma ao jornal.

Outro imigrante – um então “industrial em panificação” em uma cidade próxima à capital Luanda – diz que o governo só permite que se saia do país com 179 dólares, e mesmo assim de um banco local que não é aceito no Brasil. Entidades como a “Obra Assistencial Portuguesa” amparam muitos dos angolanos (brancos) que chegam ao Rio.

Uma viúva de 67 anos – “outra imigrante” que “chorava ontem numa das filas” no Itamaraty, relata o jornal – contava suas “desesperanças” para um grupo de imigrantes recém-chegados: “A população branca está-se concentrando em Luanda. Os soldados portugueses estão abandonando as províncias e quem vive nelas fica entregue à sua própria sorte. Em Angola, na hora de embarcar, a fiscalização no aeroporto chega a ser cruel. Eles, primeiro, revistam para ver se alguém está levando dinheiro em espécie (dólares) ou jóias. Só se pode sair com a cota autorizada. Meu filho tinha uma padaria em Lobito [município da província de Benguela]. Teve que fechar por falta absoluta do que fazer: não há farinha, não há combustível e, já a essa altura, não há quem se arrisque a trabalhar”.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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