1857: São Paulo quer trabalhadores europeus – e a Suíça quer se livrar deles

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da edição de 13 de fevereiro de 1857 do Correio Paulistano.

Trecho da edição de 13 de fevereiro de 1857 do Correio Paulistano.

A imigração europeia no Brasil é tema de relatório divulgado no Correio Paulistano em edições do mês de fevereiro de 1857. A publicação do dia 121, por exemplo, faz referência a um discurso no início do mês na Assembleia Provincial, informando sobre a entrega do relatório preparado pelo presidente da província, Francisco Diogo Pereira de Vasconcellos, aos parlamentares. Como este está em viagem oficial ao Rio de Janeiro, sede da Corte, quem o representa é o então vice-presidente da província de São Paulo, Antonio Roberto D’Almeida.

O documento é divulgado em diversas partes ao longo das edições desse período e trata dos principais assuntos provinciais – como a situação da saúde pública, os baixos salários dos agentes penitenciários, as estatísticas de crimes, os números da educação (ou “instrucção púbilca”), entre outros.

Citando legislação da época2, o presidente da província informa ter publicado editais autorizando “garantir na Europa a responsabilidade dos fazendeiros da província pela importância das despezas que se fizerem com o transporte dos colonos que encommendarem á qualquer indivíduo, ou sociedade, convidando os mesmos fazendeiros á apresentarem suas propostas, para acquisição dos ditos colonos”.

A condição para essa aquisição é uma “fiança idônea perante a thesouraria provincial, hypothecas de bens livres e desembargados, ou depósito na mesma thesouraria de quaes quer títulos da dívida pública”, respeitando os prazos.

Pereira de Vasconcellos afirma que a província que administra “reclama como primeiro e mais urgente de suas necessidades braços que substituão os que já faltão para a lavoura”. Ele informa ainda ter pedido ajuda ao ministério das Relações Exteriores do Brasil – à época, ministério dos Negócios Estrangeiros –, por intermédio dos consulados em Le Havre, Hamburgo, Antuérpia e Bremen, para que fossem fornecidos “os esclarecimentos precisos”.

O consulado de Hamburgo, diz ele, informa que os municípios ao norte da Alemanha não apoiam a emigração com recursos. E acrescenta: “Informa porém o mesmo cônsul que, ao sul da Allemanha e da Suissa, algumas municipalidades se achavão dispostas a adiantar á seus habitantes pobres [uma] parte, e talvez mesmo a totalidade da despeza necessária á emigração, uma vez que tenhão certeza do pagamento nas épochas convencionadas”. Vasconcellos garante que a província de São Paulo dará essa garantia, “em vista do crédito de que goza na Europa o governo do Brasil”.

O cônsul-geral do Brasil em Bruxelas alerta que, sem uma sociedade (ou mesmo com essa), será muito difícil “encarregar-se da expedição de emigrantes”. O cônsul-geral, nas palavras do presidente de São Paulo, argumenta: “(…) essa ou outra qual quer sociedade só poderá effectuar-se em vista da possibilidade de uma série repetida de operações, e nunca para o caso muito eventual de uma ou outra expedição isolada, e que não corresponde á importância de accumullação de capitaes, despezas e encommodos de uma constituição social”. Vasconcellos conclui, com isso, que será possível trazer migrantes apenas do sul da Alemanha ou da Suíça.

A demanda, no entanto, ainda não havia chegado ao poder público – segundo o presidente da província, apenas uma proposta fora apresentada até aquele momento. O fazendeiro Silvério Rodrigues Jordão – filho do brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão, cuja influência ficou marcada inclusive no nome de uma cidade, Campos de Jordão – havia solicitado a vinda de 30 famílias de migrantes. Esta solicitação, informa, teve a fiança assinada pelo senador Francisco Antonio de Souza Queiroz (o Barão de Souza Queiroz). Esse números baixos pioram ainda mais quando, no mesmo relatório, é informada a rescisão dos contratos de 27 imigrantes (ou “colonos”, como eram chamados) portugueses e 17 alemães.

Vasconcellos também faz um balanço sobre as colônias existentes em São Paulo, indicando que solicitou um mapeamento em relação à nacionalidade e o sexo dos colonos. “Pareceu-me também importante ouvir os ditos proprietários sobre o systema por elles adoptado e os inconvenientes que a prática de qualquer delles possa ter demonstrado”, acrescentou.

Uma das primeiras colônias da província recebe elogios do governo: a colônia “Senador Vergueiro”, que leva o nome do senador Nicoláo Pereira de Campos Vergueiro. O presidente menciona uma carta enviada por Vergueiro sobre o tema que o senador elogia e diz mesmo admirar a “grande emigração que os Estados Unidos attrahem para o seu paiz, e no desejo de vel-a realisada no Brasil”. Vergueiro vai direto ao ponto, ao afirmar: “A idéa que decorre espontaneamente d’aqui é – Façamos o que elles fazem”. Ele admite, no entanto, que o Brasil não está nas “mesmas circunstâncias”.

A edição do Correio Paulistano do dia seguinte – 13 de fevereiro –, Vergueiro detalha as diferentes circunstâncias que envolvem a imigração no Brasil e nos EUA. Recorda-se que estamos em 1857, a poucos anos do início da guerra civil americana. No país da América do Norte, diz o senador, as terras públicas foram vendidas e “cada um comprava na extensão conveniente aos seus planos de lavoura”. E descreve: “faltando-lhes braços mandarão vir da Europa; alguns emigrantes vierão expontaneamente, com capitaes com que comprarão terras em segunda mão, porque os colonos são impropríssimos para affrontarem as mattas virgens”. Esse trabalho acaba sendo feito pelos norte-americanos, indica Vergueiro, que destaca ser esta uma informação “para nos servir de governo e nos explicar alguns factos”.

Vergueiro, assim, critica a doação de terras públicas no Brasil. “Pelo contrário o governo do Brasil desde as donativas foi pródigo em dar as terras devolutas á quem lh’as pedia, impondo-lhes condição de que nunca exigio cumprimento effectivo”, destacou Vergueiro, que afirmou que um requerimento seu a esse respeito – e cumprido formalmente – tem sido desrespeitado na prática.

O senador Vergueiro também inclui um viés nacionalista em seu discurso: sua solução para a falta de braços – consequência, ele mesmo aponta, do fim do tráfico de escravos – é o incentivo à imigração europeia porém “indo os brasileiros na frente, apoiados nos emigrados que os seguirão de perto”.

O empresário insiste em sua crítica quanto à política agrária em relação aos migrantes: “Vejo venderem-se as melhores terras e nas melhores situações, pelo ínfimo preço a que em phrase commercial se chama – queima3; vejo subvenções por entradas de colonos e por annuidades com avançamentos de sommas adiantadas. E ainda accrescem promessas de vendas futuras”. Vergueiro classifica as medidas como “enormes sacrifícios do thesouro público”. E ironiza: “se as terras occupadas estivessem saturadas de população, nem os especuladores se lembrarião de impôr taes condições”.

Vergueiro é um capitalista – como usado na época usualmente, um homem de “capitaes” – e o tempo todo pensa na migração como uma operação econômica, que visa ao lucro e ao retorno de um investimento em médio e longo prazo. Assim, mesmo sendo contra a doação de terras, o senador tampouco apoia a desregulamentação completa desse mercado. Ele argumenta que, ao simplesmente colocar à venda as terras, serão os especuladores – e não os colonos – a comprá-las. E esses, uma vez de sua posse, “hão de vendel-as por alto preço”.

Esta é provavelmente uma das últimas vezes que o senador Vergueiro falou tão longamente sobre o tema – ele mesmo diz: “Alonguei-me mais do que pretendia por ser provavelmente a ultima vez, que me occupo d’este objecto, como me impõe a decadencia de minhas forças”4.

São diferentes os tipos de contrato à disposição, informa um dos trechos do relatório: contratos de parceria quanto à lavoura e seus produtos, por exemplo, ou a contratação de “trabalhadores jornaleiros com salários fixos” – ou seja, os trabalhadores que recebiam pela jornada de serviços realizados, daí jornaleiros.

Um dos ofícios explica que os contratos são feitos sob a condição de os colonos pagarem um terço do que foi financiado pelo governo no segundo ano vivendo no Brasil, e um terço no fim do quarto ano. O contratador se responsabiliza pelo trabalhador imigrante, se tornando na prática uma espécie de fiador, para o caso de não cumprimento do estabelecido. O ofício, no entanto, alerta para a falta de implementação dessa medida.

O cônsul suíço em Hamburgo, identificado como Sr. Ruch, é citado no ofício para explicar “o motivo por que as municipalidades adiantão dinheiro para a emigração”. A motivação das cidades suíças é tão simples e honesta que vale citar na íntegra: “Segundo a constituição dos municípios Suissos são estes obrigados a prestar auxílio e meios para a sustentação dos seus habitantes, e por isso achão mais vantajoso adiantar-lhes dinheiro para emigrar, por isso que com esse adiantamento cessão as suas obrigações, do que socorrel-os diariamente no paiz”.

Em outras palavras: era a melhor forma de se livrar desses trabalhadores. Em um dos contratos com a empresa do senador Vergueiro, o cantão suíço de Aargau (em português, Argóvia) oferece a um de seus cidadãos a quantia de 210 francos de “ajuda” para a emigração – dinheiro que terá de ser devolvido no prazo de cinco anos.

O ofício do governo paulista insiste não se trata de um bom investimento a longo prazo. O ofício dá, em vez disso, uma “dica” financeira aos cidadãos da província – em outro trecho que vale a pena transcrever: “(…) parece-me que não seria prejudicial lembrar aos habitantes de S. Paulo formarem elles pequenas sociedades para comprar e rotear terras incultas, que poderião depois vender vantajosamente aos colonos que mais tarde se apresentassem para as explorar, desenvolvendo nellas a agricultura, o que só póde ter lugar depois de desembaraçadas as terras de arvoredos que as tornão incultas”.

O documento propõe, em outras palavras, o uso da especulação agrícola para lucro dos paulistas em cima de uma eventual nova leva de imigrantes.

Uma cópia de um contrato da já mencionada Colônia Vergueiro com colonos é publicada como exemplo de boa gestão. O colono suíço Samuel Bollinger, por exemplo, e sua família – que veio com mulher e cinco filhos, nenhum deles citado nominalmente, e a noiva de um de seus filhos, a Sra. Magdalena Holliger – embarcaram na cidade de Hamburgo rumo à cidade portuária de Santos em maio de 1856. A pessoa encarregada do transporte deve pagar um preço fixo por cada pessoa embarcada, exceto crianças com menos de um ano de idade.

Os contratantes – a empresa Vergueiro e Cia. – devem recebê-los, alimentá-los e conduzi-los ao seu destino final; pagar suas passagens da Europa até Santos; pagar pela sua subsistência; e fornecer “os meios de trabalho, em quanto não poderem a isso prover a si mesmos”. A ajuda inclui sementes de café, por exemplo. Todos esses pagamentos são, na verdade, empréstimos – a juros de 6% (presumivelmente ao ano), informa o contrato. E com uma condição extra: os colonos devem aplicar para esse pagamento “pelo menos a metade do lucro líquido annual”.

O imigrante começa, assim, com uma dívida em relação ao contratante – e só pode se retirar do contrato após o pagamento dessa dívida. E, mesmo assim, deve informar um ano antes sobre a intenção de sair. Caso descumpra qualquer uma das duas condições (pagamento ou aviso prévio), o colono trabalhando para a Vergueiro Cia. Deve pagar uma multa de 50 mil réis “por cabeça”.

E cabe observar aqui a forma de apoio à passagem: no caso do Sr. Bollinger e família, tanto o cantão suíço quanto o contratante “adiantaram” essa despesa, e em ambos os casos o dinheiro terá de ser devolvido. Com uma especificidade: o contratante se obriga a retirar essa despesa suíça na fonte da renda do Sr. Bollinger, o impedindo de desonrar a dívida. O contrato foi feito pelo conselheiro Joaquim Maria Nascentes de Azambuja em 8 de maio de 1856.

No documento do senador Vergueiro antes mencionado, há algumas informações interessantes sobre as colônias sob sua gestão. Uma pesquisa prévia indica que todas as colônias citadas nos próximos parágrafos são majoritariamente compostas por cidadãos germânicos, embora muitas outras nacionalidades estejam representadas.

A província de São Paulo possui uma população de pelo menos 541 mil habitantes, segundo o próprio relatório, que admite que este número pode passar de 600 mil segundo “outros cálculos”. Destes, 89.853 são estrangeiros; 254.229 são “população nacional livre” e outros 196.876 “população escrava”5.

Na Colônia Getubá, por exemplo, o documento afirma que o sistema de parceria falhou. O fazendeiro, diz o texto, não consegue fazer cumprir o contrato em relação à produtividade das plantações, enquanto que na fazenda do barão de Nova Friburgo o sistema adotado é de contratos por salários, com “resultados vantajosos”.

A Colônia Florence também adota o sistema de parcerias, e seu proprietário local aponta os embaraços encontrados. Os colonos, por exemplo, chegam à colônia “onerados” com as exigências “praticadas por muitos agentes”, o que “eleva seus encargos a ponto desanimador”. Outro ponto destacado são os juros: enquanto o valor do contrato da Vergueiro Cia. é de 6% para os colonos, os próprios fazendeiros pagam para os bancos e outros credores 12%.

A Colônia de Sete Quedas também adota o sistema de parceria, e o documento cita uma esperança de que, no futuro, se estabeleça a imigração espontânea – desonerando assim o fazendeiro, que tem de adiantar os altos custos de viagem. Essa pesquisa mostra que, ao contrário, a imigração subvencionada será o principal método de atrair migrantes da Europa.

Sobre a Colônia Independência, localizada há cerca de 60 quilômetros de Petrópolis6, o proprietário teria colhido “resultados vantajosos do systema de parceria”, embora não aconselhe como regra geral “visto que depende para o seu progresso de circunstancias especiaes, como natureza do terreno, posição geographica, genero de cultura etc”. Um outro proprietário – da colônia de Morro Azul – é mais direito: pretende abandonar o sistema de parceria por julgar que o assalariado “dará melhores resultados”.

Em Campinas, na colônia de Boa-Vista, é informado no documento que seu proprietário “lamenta a falta de meios em que se acha para compellir os colonos aos cumprimentos de seus contractos”. Já na colônia de Pouso Alegre do Jahu, o documento resume: “O proprietário não julga conveniente o systema de parceria que adoptou, e dá preferencia ao de arrendamento, porque n’aquelle faltão absolutamente garantias do direito do fazendeiro”.

Na colônia de Morro Grande, o que faltam – segundo o relatório – são juízes “que prompta e summariamente julguem as desintelligencias entre os colonos e o fazendeiro”. O proprietário reclama ainda que os “juízes de paz em geral são pouco illustrados e indifferentes ao pensamento da colonisação”. Este proprietário vai um pouco mais longe: sugere que sejam organizados os regulamentos internos de todas as colônias com o mesmos sistema, criando assim um código comum “que facilmente possa ser applicado aos transgressores.

Na edição de 17 de fevereiro, o relatório continua com o “importante assumpto” da “cathequese e civilisação dos índios”. O tema da colonização estrangeira é, assim, encerrado no documento.

Esse relatório é, a meu ver, um importante documento histórico que mostra a mentalidade da época em relação não só a este tema, mas à forma como as políticas públicas eram adotadas neste momento histórico de lento e gradual abandono das práticas escravagistas.

NOTAS

1 Correio Paulistano, 12 fev. 1857. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=090972_01&pagfis=1876&url=http://memoria.bn.br/docreader#. Acesso em 13 out. 2017.

2 Lei n. 31 de 7 de maio de 1856.

3 No sentido, caso não tenha ficado claro, de “liquidação”, a um preço irrisório.

4 Nascido em Portugal em 1778, Nicolau Pereira de Campos vergueira falece mais de dois anos após esse documento, em 18 de setembro de 1859.

5 Esta nota está na página 3 da edição de 14 de fevereiro de 1857 do mesmo Correio Paulistano.

6 Sobre a Colônia Independência, para uma análise a partir de cartas de seus moradores, ver por exemplo: ALVES, Débora Bendocchi. Cartas de imigrantes como fonte para o historiador: Rio de Janeiro – Turíngia (1852-1853). Rev. Bras. Hist., São Paulo , v. 23, n. 45, p. 155-184, July 2003 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882003000100007. Acesso em: 28 out. 2017.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *